Fragmento #53 – Janela fechada
Olho pela minha janela e vejo a mãe do meu vizinho na sombra, está de óculos escuros, sempre de negro, mas com um casaco bege aos ombros, ela fecha-a quando se sente observada por mim, viu-me a escrever no computador. Desta vez não tive medo da assombração, talvez porque as almas do outro mundo hoje não me estão a assustar; e aquela mulher nunca sai de casa, só a vejo de vez em quando a espreitar à janela; hoje sinto que são os meus pés que me estão a matar, estou de rastos, andei quilómetros por aí, estou assustada com os vivos que circulam fora de casa, fico cansada só de pensar que ainda tenho que ir à rua; fui ao ginásio logo de manhã rescindir o meu contrato, era importante para as obras pós-drásticas no corpo continuar lá, a rapariga do atendimento perguntou-me porque desistia com um sorrisinho artificial, com aquele ar de venda do costume, respondi que estou desempregada por isso não posso continuar com a despesa e que não tenho nenhuma obrigação de dizer porquê. A menina mudou de expressão já com um papel na mão, perguntou-me se colocava a cruz nas dificuldades financeiras, disse-lhe que seria o mais acertado. Fico a saber que ainda tenho direito a um mês e que tenho de o pagar, só se pode terminar as coisas com 30 dias de antecedência, o pedido já foi feito ao banco, digo-lhe que não fui avisada que era assim e pergunto o que é que acontece se não houver dinheiro no banco. A rapariga do atendimento já perdeu o sorriso há muito tempo e delicadamente informa-me que poderei lá ir pagar pessoalmente; saio daquele sítio com uma sensação de atrofiamento e começo a andar a pé pelas ruas da cidade, olho com receio os transeuntes, os carros a apitarem, anda tudo num estado selvático e aqui a borderline continua em contemplação, vou vendo a psicose à solta nas ruas da cidade de Lisboa. O tempo está instável, ontem tive um bom dia e hoje circulo a pé sem parar nas ruas, onde cada vez existe mais lojas de chineses. Chego a casa e deparo-me com uma bruxa de perna partida; o meu último biscate foi este, construir bruxas encomendadas para uns mecenas pouco florentinos. Nem fui eu que as inventei, aquilo começou a intervir demasiado no meu espaço, rendeu pouco e só queriam abusar, agora vou pegar no assunto quando me apetecer, porque do meu tempo e espaço sei eu, conheço bem o gosto doce e amargo da liberdade. Foi uma criança que partiu o raio da bruxa (porque será?), trouxeram-na para aqui, querem que faça também correcções, como se tivesse obrigação de fazer alguma coisa e nem falaram em dinheiro, afinal sou murcona e artista, um cocktail molotov. Bom, expliquei-lhes que era necessário material para remendar e corrigir, isso significa também horas de trabalho, a resposta foi que apenas lhes interessa colocar a dita na loja, mas que davam dinheiro para isso ser possível, deve ser um pequeno favor que me estão a prestar. Outro dia foi lindo, a mecenas pouco florentina telefonou porque necessitava que eu fosse com urgência colar outra perna a uma bruxa (que nem fui eu que a fiz), extraordinário, respondi que tinha coisas marcadas e muito importantes, como sou uma alma caridosa dei-lhes instruções sobre como se usa cola de contacto – isto tudo via telefone. Cada vez estou mais convencida de que ter dons divinos para a criação é sina de franciscana, fico em paz rodeada de plantas, pássaros e gatos, mas quanto aos bichos humanos tenho pouca apetência para eles. Resta-me andar a pé, por enquanto com sapatos, mas com o andar da coisa qualquer dia já não os tenho. Mesmo assim, vou recebendo propostas interessantes no meio disto tudo – outro dia até fui convidada para lanchar num hotel, perguntei porquê, respondeu-me que era para ver uma bela vista da cidade de Lisboa, deu-me imensa vontade de rir, quem fez a proposta devia achar que eu sou um belo lanchinho artístico. Não tenho paciência nenhuma, nunca tive e prefiro andar a pé.
Maria João
Maria João
7 Comments:
As pessoas tentam aproveitar-se ao máximo umas das outras. Como vivemos num país miserável, isso torna-se ainda mais evidente. Há quem não baixe as calças (ou levante as sais), há quem não resiste. A verdade é que todos os dias vou escutando histórias de gente sem escrúpulos que sobrevive de ludibriar amigos, familiares, às vezes a própria família mais próxima. Que essa realidade não nos amoleça, é o que espero. Já não espero que não nos extenue de alguma maneira, mas, pelo menos, que não nos amoleça e nos torne nuns crápulas.
Se fosse crápula escrevia textos onde colocava os nomes completos das pessoas, em vez de alcunhas que invento. Mas um dia destes, nunca se sabe.
Maria João
Agora não percebi. :/
Não é contigo, Henrique, tive apenas um mau dia, espero que tudo esteja melhor amanhã.
Maria João
Um jinho p´ra ti Maria João!
jr
Maria João, também tenho esse dilema de pôr ou não pôr os nomes. Acho que não se pode, nem a etnia, nem a religião, nem a orientação sexual. A única coisa que a bem-pensância nos permite é pespegar com o clube de futebol a que se pertence.
Boa Fag, tens toda a razão, até porque eu invento sempre alcunhas comicas para algumas pessoas, assim ao menos puxo pela imaginação, é uma forma de rir das coisas más, tudo pode ter um lado positivo!
Maria João
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