Fragmento #52 – Da educação
Ultimamente, não sei o que se passa com as hormonas da minha alma, mas sempre que a minha caneta se activa no papel, só aparecem textos confessionais – que são tão aborrecidos que nem os passo para aqui; acho o umbigo uma parte do corpo pouco interessante, por isso desconfio destes textos e penso que a paixão é a melhor forma de nos superarmos, também uma forma de nos libertarmos de nós próprios. Caramba, isto até parece um linguarejar de padres, mas desde pequena que não confio em homens de saias e andei num colégio no 1º ciclo em Évora – o arcebispado das terras do além Tejo – em que o director era um padre professor de português com métodos antigos, que fazia chamadas orais e batia nos alunos que não respondiam; a criatura dava também religião e moral, lembro-me de assistir em plena aula ao seu choro compulsivo quando se lembrava da mãezinha, uma santa que tinha morrido e de certeza estaria no céu – era caso para pensar que se tratavam de aulas de religião imoral. O seu nome era Padre Barroco, ironias do destino e o homem era manco como o diabo, entrava nas aulas a fumar e a coxear, depois escarrava no caixote do lixo, apagando a beata, sentando-se na mesa do poleiro perante o nosso silencioso medo; ele tinha dois óculos diferentes e utilizava-os consoante as necessidades, ver-nos ao longe ou ler de perto e por vezes colocava os dois em simultâneo – sempre achei que devia ser para os fenómenos paranormais, mas só recentemente me apercebi que ele era mesmo de outro mundo, um monstro extra-terrestre e foi o meu sobrinho Vasco que me ensinou isso. Bom, vou agora colocar o padre de parte e concentrar-me nos ensinamentos do meu sobrinho: tenho cinco sobrinhos e uma sobrinha, mas confesso (raio de palavra) que tenho um fraquinho especial pelo Vasco, desde que o vi na maternidade; estas coisas não se explicam, empatias, ele é o segundo filho da minha irmã que tem três rapazes. O Vasco tem oito anos e é especial, diferente, para além de ser lindo, mas eles são todos lindos; é o mais introvertido, calmo, sempre com um sorriso charmoso e gosta de brincar sozinho desde sempre, fica horas concentrado em qualquer coisa, nem se dá por ele; porém, detesta que lhe chateiem a cabeça; o Vasco aprendeu a fazer contas sozinho com um jogo antes de ir para a escola e tem também interesses que os miúdos da idade dele não têm habitualmente, tais como dinossauros, foi ler sobre o tema na enciclopédia, sabe os seus nomes todos e descreve-os; agora ele costuma vir a minha casa aos sábados, desde uma tarde em que se dirigia com a minha irmã ao médico e como não foi possível haver consulta, ele propôs irem ao museu da Vieira da Silva que era ali perto, para ver um quadro que o professor mostrou na aula; afinal o quadro não estava no museu, no entanto, ele viu tudo com um enorme entusiasmo e pediu à mãe para comprar o catálogo; foi então que a minha irmã se lembrou aqui da borderline artista Tia Janinha para lhe dar umas lições de pintura, talvez lhe fizessem bem visto que ele tem tão más notas a tudo. O Vasco está num colégio católico para elites de Lisboa, eu (a louca Tia Janinha) tinha a sensação que ele com o seu feitio estaria desenquadrado naquele sítio, daí os maus resultados; agora que estou mais perto, fiquei aliviada porque nas aulas de religião ele está a aprender a rezar o terço e confessou-me (raio de palavra) que acha uma seca. No entanto, vou ficando cada vez mais preocupada com outros aspectos, tais como ele gostar muito de ler as histórias do antigo testamento – será que existe em BD alguma versão dos clássicos gregos? Se souberem, digam-me, talvez assim o converta a outras coisas. Comecei por deixar o meu sobrinho pintar à vontade quando aqui vinha, ensinando-lhe apenas alguns aspectos técnicos e materiais, consoante as necessidades dele; um dia refilou comigo e perguntou-me se afinal eu estava a dar-lhe aulas ou não, respondi-lhe que eram aulas particulares, por isso eram diferentes das do colégio; então, ele foi ficando mais à vontade e começou a tomar iniciativas, por exemplo, perguntou-me por formas geométricas, expliquei-lhe que servem para medir e encaixar outras formas, ensinei-lhe a usar o compasso e ele todo contente quis desenhar um caracol partindo de uma circunferência; na última sessão foi de mais, ele disse-me que detestava o professor do colégio desde a primeira vez que o viu – e já o tem desde o 1º ano; então, pedi-lhe para fazer um retrato do professor e ele pintou um monstro extraterrestre verde. A louca furiosa Tia Janinha sugeriu logo que o mostro verde devia ter baba e ranho, ele riu-se e respondeu-me: se as pessoas têm ranho verde e o professor é um monstro verde extraterrestre, então o ranho dele é cor de pele. Fiquei muito contente com a resposta, fartámo-nos de rir e ensinei-lhe a misturar as cores para obter cor de pele humana. Lembrei-me logo das escarretas verdes nojentas do Padre Barroco no caixote do lixo da aula do colégio horrendo onde andei e só de lá saí quando fiz um enorme chinfrim em casa, porque ele me pregou um estalo em frente de toda a turma – e depois fui para uma boa escola pública. Esta história ainda não a contei ao meu sobrinho, tenho de ganhar coragem.
Maria João
Maria João
10 Comments:
Gosto muito destes textos que partilhas connosco, Maria João.
Fernando, tens uma paciencia desgraçada para ler isto! Tenho andado com as mãos ocupadas na escultura por isso resmungo tanto com o que escrevo, é normal, desconcentro-me.
Maria João
gosto do teu sobrinho. gostei do teu texto. também eu não confio em homens de saias. também eu levei um estaladão de um padre em frente de todos os colegas: era Maio, cantava-se a Nossa Senhora de Fátima e as alergias atacavam: espirrei e o dito cujo chamou-me muito calmamente. no momento em que cheguei ao alcance do seu braço: TRÁS: estaladão! fiquei-lhe com um pó que ainda hoje não o posso ver. e Deus me perdoe, mas guardo-lhe uma raiva que nem te conto!!
É a idade, na sua parte boa.
Confessa que é bom ter que contar.
Pois é Manuel e Sissi: o meu sobrinho Vasco tem um feitio peculiar. Ficamos a saber pelo António, o irmão mais velho, que o professor dele volta e meia prega umas estaladas nos alunos, o gajo não é padre, mas o colégio é católico. A minha irmã já falou com o homem, ele confessou que nunca bateu no Vasco e diz que o miudo tem falta de atenção dos pais, mas eu desconfio que ele deve é ter um medo que se pela do professor. Estou a tentar convencer a minha irmã a muda-lo de turma para o ano, mas ela diz que o professor é muito exigente, ensina bem, e ela tem confiança naquele antro católico. Quando tento defender o miudo, ela reaje de um modo agressivo,a culpa nos catolicos tem uns efeitos pessimos, já lhe tentei explicar isso também, ela responde que o Vasco é calão, distraido e muito infantil, gosta mesmo é de andar na galhofa. Eu acho-o muito inteligente e se calhar noutra turma com outro professor, ou mesmo noutro tipo de ensino, ele ficava mais feliz. É claro que ele é preguiçoso, ele confessou-me que queria ter a professora do António, porque como ela tem filhos pequenos falta muito, mas isto é a prova que o miudo é esperto, não percebo porque tira tão más notas. Receio que ele odeia a "escola" e que assim continue o resto da vida, a ter maus resultados. Bom, tenho de pensar em outros modos de o defender, visto que este meu sobrinho é uma das minhas paixões.
Maria João
gostei muito deste texto :)
Também eu gostei muito deste texto Maria João!
joaquim
Olá margarete e Joaquim, vocês são uns queridos.
Maria João
Que delicioso ler-te...
Pensei no meu filhote, que também está longe de ser grande aluno e gosta de pintar...
Obrigada Luís.
Enviar um comentário
<< Home