No Ano Internacional da criança
Dizia aqui há dias, não sei quem,
Com sorrisos de abastança e falas de desdém
- Que fome impertinente, que gula subversiva!
E fogueiras ardem e desmascaram-se folias.
Sobre um mar negro onde a loucura é diva
Desfraldam-se guerreiras melodias.
Boiardos sublevados cospem no cadáver de Lenine
Enquanto uns comem passas de Corinto
No Palácio de Inverno há biombos de absinto
Para que a matula, por detrás, urine.
Reuni a Geral Assembleia da generalizada carência
Vós sois orgulho e gáudio de toda a nossa ciência!
Párias do Bangla Desh
Paus de Arara do Nordeste
Kampucheias peregrinos
Bantustões das podres roças
Sentam-se com um sorriso agreste
E mães mostram meninos com um ar exangue.
Depois entra o Biafra a cantar hinos
E ostentando as mãos cheias
De pistolas disparam – bang, bang –
Vestidos de cowboy, sem sapatos nem meias.
«Alto lá, esta lata está estragada!»
Grita descomposto Hamlet na televisão
Olhando a caveira do pai mal embrulhada.
Bob Dylan suspira que nos States se desterra
E pelo sim, pelo não,
Investe em acções numa fábrica de guerra.
Porco, sujo, quero-me porco!
Poderia Maiakovski ter gritado
No auge do desespero e da desdita
Porque até o modernismo se consome,
Tem a modernidade que tem a própria fome dita.
Ai Marinetti! Suspira o Duce p’ra Dannunzio,
E o Che faz tiro ao alvo nas palavras, presas numa guita,
Dos poetas de raras sensações.
E «um grande lagarto verde com olhos de pedra e água»
Vende castanhas a dez tostões
E puxa fogo aos rútilos pinhais da mágoa.
Entretanto, ò suprema das venturas,
É Natal e isso se alcança da televisão a cores
Mas um hereje desdenha das alturas
Porque adormece mal,
Porque não tem boa-vontade
De se deitar com fome
De amanhecer com dores.
E enquanto se entende a doce melodia
O Papa no fervor da pregação
Escorrega e cai com palavras ímpias
Sobre a pia.
Ai João Paulo cinquenta vezes o negaste!
Estar vivo é ferver em água benta
E tudo é um paiol ou uma veia
Que ao pulsar fatalmente rebenta.
Por isso sou um louco à margem da vida
Com os cabelos da alma desgrenhados.
Estou convosco ò miseráveis
Na vala comum dos deserdados!
E, ai de mim, que vaga fronteira!
Um instante de vida é tempo ganho à morte
Pois morrer aos quinze anos ainda é ter sorte.
Por isso Índia, efémera e vedântica
És santa e luminosa
Na cópula frenética
Mas, perdoem-me Aurobindo ou Ramdas,
- Tudo será Maya – que visão esquelética!
À folia, à tripa forra!
Viva o coito de barraca
Com os incautos a olhar
E a chafurdarem, alegremente, em caca.
Vejo tudo isto – constatação bem velha
E Van Gogh doido de amarelos
Corta uma orelha.
Olho distraído o meu umbigo
Tenho nojo da minha saciedade.
A rainha de Inglaterra perde a compostura
E masturba-se com banana madura
Inaugurando um lar para a terceira idade.
Wenn ich eine Schwalbe wäre
E um miúdo maltrapilho risca-me o carro
E eu fico de olhar turvo e com um instinto bera.
Ò portas cintilantes sobre a madrugada
Ténues vestígios sobre a fronteira da vida
Aparas da morte debruçadas sobre o nada,
Tão perto, tão perto…
Coexistem alegres comemorações sobre o corpo de um burro
E de M=mc2 um vago cheiro a esturro.
Um hipopótamo vestido de Tio Sam
Vai direito à lua todo cio.
Bandeirinhas se agitam em todas as nações
Ritmos de can-can
Alegres canções
E eu penso: A puta que os pariu!
E ardo como um incêndio
No manicómio da história
E é noite de Natal,
Alles Schlaft,
E – Tudo brilha em glória.
Num lance de teatro
Cristo foge arrependido pela porta do cavalo.
Torquemada murmura: meus irmãos!
A oposição berra: não me calo!
E um Pilatos qualquer defeca aliviado
Na bacia em que lavou as suas mãos.
- Canso-me enfim. Quero dormir sobre este pesadelo.
Um instante de repouso
E que haja aqui e agora um velho do Restelo,
Que nos incendeie ou nos roube as esperanças
E sendo das Fúrias o seguro dono,
Nos lance a sua maldição:
Gente sem sentido,
Ou voltais de novo a ser crianças
Ou tendes de perder, para todo o sempre, o sono!
Dizia aqui há dias, não sei quem,
Com sorrisos de abastança e falas de desdém
- Que fome impertinente, que gula subversiva!
E fogueiras ardem e desmascaram-se folias.
Sobre um mar negro onde a loucura é diva
Desfraldam-se guerreiras melodias.
Boiardos sublevados cospem no cadáver de Lenine
Enquanto uns comem passas de Corinto
No Palácio de Inverno há biombos de absinto
Para que a matula, por detrás, urine.
Reuni a Geral Assembleia da generalizada carência
Vós sois orgulho e gáudio de toda a nossa ciência!
Párias do Bangla Desh
Paus de Arara do Nordeste
Kampucheias peregrinos
Bantustões das podres roças
Sentam-se com um sorriso agreste
E mães mostram meninos com um ar exangue.
Depois entra o Biafra a cantar hinos
E ostentando as mãos cheias
De pistolas disparam – bang, bang –
Vestidos de cowboy, sem sapatos nem meias.
«Alto lá, esta lata está estragada!»
Grita descomposto Hamlet na televisão
Olhando a caveira do pai mal embrulhada.
Bob Dylan suspira que nos States se desterra
E pelo sim, pelo não,
Investe em acções numa fábrica de guerra.
Porco, sujo, quero-me porco!
Poderia Maiakovski ter gritado
No auge do desespero e da desdita
Porque até o modernismo se consome,
Tem a modernidade que tem a própria fome dita.
Ai Marinetti! Suspira o Duce p’ra Dannunzio,
E o Che faz tiro ao alvo nas palavras, presas numa guita,
Dos poetas de raras sensações.
E «um grande lagarto verde com olhos de pedra e água»
Vende castanhas a dez tostões
E puxa fogo aos rútilos pinhais da mágoa.
Entretanto, ò suprema das venturas,
É Natal e isso se alcança da televisão a cores
Mas um hereje desdenha das alturas
Porque adormece mal,
Porque não tem boa-vontade
De se deitar com fome
De amanhecer com dores.
E enquanto se entende a doce melodia
O Papa no fervor da pregação
Escorrega e cai com palavras ímpias
Sobre a pia.
Ai João Paulo cinquenta vezes o negaste!
Estar vivo é ferver em água benta
E tudo é um paiol ou uma veia
Que ao pulsar fatalmente rebenta.
Por isso sou um louco à margem da vida
Com os cabelos da alma desgrenhados.
Estou convosco ò miseráveis
Na vala comum dos deserdados!
E, ai de mim, que vaga fronteira!
Um instante de vida é tempo ganho à morte
Pois morrer aos quinze anos ainda é ter sorte.
Por isso Índia, efémera e vedântica
És santa e luminosa
Na cópula frenética
Mas, perdoem-me Aurobindo ou Ramdas,
- Tudo será Maya – que visão esquelética!
À folia, à tripa forra!
Viva o coito de barraca
Com os incautos a olhar
E a chafurdarem, alegremente, em caca.
Vejo tudo isto – constatação bem velha
E Van Gogh doido de amarelos
Corta uma orelha.
Olho distraído o meu umbigo
Tenho nojo da minha saciedade.
A rainha de Inglaterra perde a compostura
E masturba-se com banana madura
Inaugurando um lar para a terceira idade.
Wenn ich eine Schwalbe wäre
E um miúdo maltrapilho risca-me o carro
E eu fico de olhar turvo e com um instinto bera.
Ò portas cintilantes sobre a madrugada
Ténues vestígios sobre a fronteira da vida
Aparas da morte debruçadas sobre o nada,
Tão perto, tão perto…
Coexistem alegres comemorações sobre o corpo de um burro
E de M=mc2 um vago cheiro a esturro.
Um hipopótamo vestido de Tio Sam
Vai direito à lua todo cio.
Bandeirinhas se agitam em todas as nações
Ritmos de can-can
Alegres canções
E eu penso: A puta que os pariu!
E ardo como um incêndio
No manicómio da história
E é noite de Natal,
Alles Schlaft,
E – Tudo brilha em glória.
Num lance de teatro
Cristo foge arrependido pela porta do cavalo.
Torquemada murmura: meus irmãos!
A oposição berra: não me calo!
E um Pilatos qualquer defeca aliviado
Na bacia em que lavou as suas mãos.
- Canso-me enfim. Quero dormir sobre este pesadelo.
Um instante de repouso
E que haja aqui e agora um velho do Restelo,
Que nos incendeie ou nos roube as esperanças
E sendo das Fúrias o seguro dono,
Nos lance a sua maldição:
Gente sem sentido,
Ou voltais de novo a ser crianças
Ou tendes de perder, para todo o sempre, o sono!
Adalberto Alves, José Adalberto Coelho Alves, nasceu no dia 18 de Julho de 1939. Licenciou-se em Direito, exercendo ainda hoje advocacia. Frequentou também o Conservatório Nacional e a Academia dos Amadores de Música, tendo estudado violino e guitarra clássica. O seu interesse pela cultura muçulmana levou-o a estudar Língua Árabe na Universidade Nova de Lisboa, curiosidade que se alarga à História e Cultura Árabico-Islâmicas. Entre os seus vários livros de poesia, contos e ensaios, destacam-se obras como Uma obscura visão (1979), O Gume e o tempo (1982), O Meu Coração é Árabe – Poesia luso-árabe (1987). »
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