21.2.08

DOIS OBJECTOS INQUIETANTES



O PÃO

Eis o pão sobre a toalha:
não se agita, não grita
- está ali, simplesmente
como uma ilha a descobrir
pelo sabor e o cheiro.

Um pão morto, um pão vivo
o cortado ou o inteiro?

O pão por vezes geme
como uma égua louca
e cresce, cresce ardendo
no sangrento e lavrado
triste e desabitado
nevoento, esfomeado
céu da boca.

O pão é a substância
dum bicho transformado:
o tempo e a terra
onde foi criado.


O PRATO

Que experiência
levar com ele na cara!

Filósofo ou poeta
marinheiro ou pastor
ou doutra profissão
em que o físico tenha o principal papel
o prato é sempre prestável
excepto quando há circunstâncias
atenuantes. Então
não dá tréguas nem descanso: que se amanhe
quem nele come!

As flores são num prato
normalmente decoração. Pois que nele
têm os legumes a carta de nobreza: o azeite
é um rio de frescura, atravessando
saiba-se lá que inóspitas planuras
de justíssima gula.

Nele repousam os peixes
os capões
os arrotos dos convivas. Má educação seria
deixá-lo cheio.

Do prato à boca
se ganham insuspeitadas malícias e sabedorias.


Nicolau Saião
in “OS OBJECTOS INQUIETANTES” (1993)

1 Comments:

At 4:04 da tarde, Blogger Memória transparente said...

Bom momento poético.

Obrigada pela partilha.

 

Enviar um comentário

<< Home