DEADPAN
Não retiro grandes vantagens de estar vivo, mas pior ainda é constatar que retiraria menos vantagens de estar morto. Há sempre a possibilidade de ficar parado a olhar um vídeo de Steve McQueen, ouvir Tricky, contar pelos dedos os minutos que faltam para terminar mais uma jornada de trabalho. Olho geralmente a paisagem à minha volta com um tom afirmativo. Não gosto de interrogar a natureza das coisas. Prefiro ficar parado a olhar as coisas como se fossem um vídeo de Steve McQueen. Detesto esse lugar comum cruzado de que as interrogações são muito mais positivas do que as afirmações. Quem muito se interroga, sofre. Haverá prazer no sofrimento? Haverá vantagem no sofrimento? Até porque as pessoas que assim falam são sempre muito afirmativas no elogio da interrogação. Não admitem sequer a sua veia escutista, ao colocarem de lado a mera hipótese de que as interrogações não passam de afirmações inquietas. Recuso a expectativa das respostas imponderáveis, impossíveis, até porque, à partida, sabemos que nenhuma pergunta tem resposta, pelo que melhor será começarmos por responder à nossa necessidade de interrogar tudo o que mexa. Contribuo para o contexto com uma história: fico parado a ouvir Tricky e a olhar um vídeo de Steve McQueen. Conto pelos dedos os minutos que faltam, é provável que baixe o som. Não quero acordar os pássaros do sono descansado em que suspenderam o voo. Atinjo o vértice das árvores com o meu olhar perscrutativo, pergunto-lhes se terão tempo para as minhas indagações, deixo o olhar escapulir-se pelos ermos do céu e mergulho numa profunda solidão. Depois pergunto-me se, interrogo tudo à minha volta, questiono-me sobre os ses dos ses. De nada me valem tais perguntas. As perguntas ferem-me cada vez mais, deixam-me transfigurado num vazio sem explicação, encerram-me numa gaiola imaginária, perpetuam a agonia dos dias numa espécie de massacre lento, célula a célula, de um corpo há muito invadido pela migração do tempo. Porque há no tempo um corpo a fugir-nos, um lugar que nos escapa, uma espécie de desenho a ser apagado pela luz, jactos de água contra telas monocromáticas, um apagamento, um esvaziamento, uma raspagem, o tempo é a lixa da carne, desvela-nos as fendas, alisa-nos a morte. Quero apenas capturar uma certa forma contemplativa de voltar a olhar o chão, os pés que pisam a terra, as pegadas dos caminhantes, o rastro deixado por quem há muito partiu para dentro de um mar de esquecimento. Não olho nesses cinzentos a nostalgia diacrónica dos poetas, nem a fraqueza dos ladrões que aqui vêm pescar ideias, frases, palavras, como quem não tem no texto o hálito estragado do tal corpo rasurado. Estou-me nas tintas para os débeis. O meu quotidiano é cada vez mais uma captura, um olhar morto, um corpo inchado de insucessos, uma procriação sem futuro. Que o esquecimento se aproxime a uma velocidade avassaladora, será apenas o pormenor insignificante do trabalho que a todos toca. Por isso paro a olhar Steve McQueen, a pensar como seria bom voltar a escutar Tricky, escrever-te um verso em prosa, um poema em prosa de verso:
fumar-te para dentro
dos meus pulmões
como se fosses um facho de vento
perdido nas sombras dos meus dias.
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