SOMBRAS
Lourdes Castro
Não tenho saído de casa. Fico pregado ao chão das paredes, a olhar a sombra projectada dos gestos, contando os minutos, arrancando os minutos do corpo como se fossem pétalas secas. Cada minuto que passa, por estes dias, é uma pétala seca que arranco ao corpo. Estou cada vez mais estático nos meus gestos, sinto-me como se fosse uma sombra inchada, sofro as consequências de uma coreografia completamente aleatória: a minha vida. No entanto, não é sobre a minha vida que pretendo escrever. A minha vida, ainda que se reflicta em tudo, não interessa para nada. Tenho uma vida que parece um passaporte caducado. Não serve para nada, a minha vida. Mas, como disse, não é sobre isso que pretendo escrever. Quero escrever sobre objectos belos, mulheres lindíssimas, paredes brancas, quero escrever sobre girassóis, plantas deslumbrantemente vivas, o voo dos pássaros, cânticos livres, quero escrever sobre águas puras, assinar o meu nome nas águas puras dos rios, mesmo que me seja já tão difícil encontrar um rio de águas puras, quero escrever sobre os meus pés na areia de uma praia, não sobre a praia nem sobre mim na praia, apenas sobre as marcas que os meus pés deixam na areia enquanto caminho, a olhar o mar, as gaivotas pousadas na ondulação das marés, alguns barcos atracados ao nosso olhar divagante. Quero escrever qualquer coisa acerca da luz dos teus olhos, a magia que me devolve à vida, um sorriso fora de órbita e todo o catálogo envolvente da exposição. Perdura em mim uma indecisão constante quando se coloca a possibilidade de escrever acerca de coisas assim. Por isso tento ver o homem para lá da mancha azul, tento ver o homem para lá de uma certa melancolia, uma melancolia branca, tento ver o homem para lá dos espaços amplos. Há dias, fui a Alcobaça ver o que fazem os espaços amplos. Os espaços amplos transformam completamente a paisagem dos homens, e eu fico sem saber se prefiro uma árvore em cada canteiro ou um amplo espaço vazio. Tem dias que nada me acalma mais do que um terreno liso. Começo a imaginar as árvores crescendo no sentido das raízes, começo a imaginar tudo do avesso, as árvores a crescerem para baixo da terra, começo a imaginar pássaros subterrâneos, como se o céu fosse a água que corre nos lençóis freáticos, e imagino um céu repleto de peixes, toupeiras a escavarem nuvens, tudo do avesso. Concentro-me então na figura e sinto o espaço amplo que a figura me sugere, sinto-me como se estivesse a deitar-me sobre uma mesa vazia, sinto-me pronto para executar os eclipses necessários a uma certa paz, o esquecimento, a mágica maré do esquecimento. Se algo há que me agrada profundamente nos trabalhos de Lourdes Castro é a lisura dos espaços amplos, a forma como as figuras respiram uma certa quietude e como eu respiro a quietude delas. Já disse que não pretendo falar de mim. Permitam-me, no entanto, confessar que hoje, sempre que os músculos imprimiam algum movimento no corpo, sempre que do corpo arranquei pétalas secas, foi na ampla lisura dos espaços de Lourdes Castro que pensei. Andei o dia inteiro com estas imagens projectadas na cabeça. Vim agora aqui, descontraidamente, libertar-me delas e regressar à minha sombra de sempre.
Não tenho saído de casa. Fico pregado ao chão das paredes, a olhar a sombra projectada dos gestos, contando os minutos, arrancando os minutos do corpo como se fossem pétalas secas. Cada minuto que passa, por estes dias, é uma pétala seca que arranco ao corpo. Estou cada vez mais estático nos meus gestos, sinto-me como se fosse uma sombra inchada, sofro as consequências de uma coreografia completamente aleatória: a minha vida. No entanto, não é sobre a minha vida que pretendo escrever. A minha vida, ainda que se reflicta em tudo, não interessa para nada. Tenho uma vida que parece um passaporte caducado. Não serve para nada, a minha vida. Mas, como disse, não é sobre isso que pretendo escrever. Quero escrever sobre objectos belos, mulheres lindíssimas, paredes brancas, quero escrever sobre girassóis, plantas deslumbrantemente vivas, o voo dos pássaros, cânticos livres, quero escrever sobre águas puras, assinar o meu nome nas águas puras dos rios, mesmo que me seja já tão difícil encontrar um rio de águas puras, quero escrever sobre os meus pés na areia de uma praia, não sobre a praia nem sobre mim na praia, apenas sobre as marcas que os meus pés deixam na areia enquanto caminho, a olhar o mar, as gaivotas pousadas na ondulação das marés, alguns barcos atracados ao nosso olhar divagante. Quero escrever qualquer coisa acerca da luz dos teus olhos, a magia que me devolve à vida, um sorriso fora de órbita e todo o catálogo envolvente da exposição. Perdura em mim uma indecisão constante quando se coloca a possibilidade de escrever acerca de coisas assim. Por isso tento ver o homem para lá da mancha azul, tento ver o homem para lá de uma certa melancolia, uma melancolia branca, tento ver o homem para lá dos espaços amplos. Há dias, fui a Alcobaça ver o que fazem os espaços amplos. Os espaços amplos transformam completamente a paisagem dos homens, e eu fico sem saber se prefiro uma árvore em cada canteiro ou um amplo espaço vazio. Tem dias que nada me acalma mais do que um terreno liso. Começo a imaginar as árvores crescendo no sentido das raízes, começo a imaginar tudo do avesso, as árvores a crescerem para baixo da terra, começo a imaginar pássaros subterrâneos, como se o céu fosse a água que corre nos lençóis freáticos, e imagino um céu repleto de peixes, toupeiras a escavarem nuvens, tudo do avesso. Concentro-me então na figura e sinto o espaço amplo que a figura me sugere, sinto-me como se estivesse a deitar-me sobre uma mesa vazia, sinto-me pronto para executar os eclipses necessários a uma certa paz, o esquecimento, a mágica maré do esquecimento. Se algo há que me agrada profundamente nos trabalhos de Lourdes Castro é a lisura dos espaços amplos, a forma como as figuras respiram uma certa quietude e como eu respiro a quietude delas. Já disse que não pretendo falar de mim. Permitam-me, no entanto, confessar que hoje, sempre que os músculos imprimiam algum movimento no corpo, sempre que do corpo arranquei pétalas secas, foi na ampla lisura dos espaços de Lourdes Castro que pensei. Andei o dia inteiro com estas imagens projectadas na cabeça. Vim agora aqui, descontraidamente, libertar-me delas e regressar à minha sombra de sempre.
4 Comments:
As sombras da Lourdes de Castro são projecções coloridas, por vezes em superficies transparentes,gostei muito do teu texto.
Maria João
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Um convite para a descoberta da obra de Lourdes de Castro que vou seguir.
A forma de estar e de sentir do hmbf tão bem escrita nestas Sombras, reconheço alguns dos seus traços na geração que denomino, ironizando, de "semi-perdida", a minha, a dos trintas. Fazemos 'coisas', alguns até 'muitas coisas', mas este sentir continua enraizado. Um pássaro subterrâneo que não quer sair da gaiola do corpo.
perdida em blogs, lendo, escrevendo, gostando, não comentando, com vontade de comentar, não sabia o que dizer, não sabia se queria dizer ou se tão pouco percebia o k estava a ler. Mas este texto lançou a minha curiosidade num sprint sanguíneo, o interesse "inchou a minha sombra". e agora vejo as colinas que alguém desenhou à minha frente, não porque não quisessem que eu não visse por detrás delas, mas para que eu podesse imaginar o que esté por detrás delas. Neste momento vejo nas colinas uma vontade indómita de lhe agradecer, a si. Parece inconveniente, parece absurdo... eu sei. Mas quero agradecer a curiosidade que despertou em mim, criança idealista de 16 anos, que já imaginou "as árvores crescendo no sentido das raízes", imaginou "tudo do avesso, as árvores a crescerem para baixo da terra,pássaros subterrâneos" e como seria se a terra podesse iluminar o sol, rodar em volta da lua.Como seria se todos podessemos conhecer um pricepezinho que nos levasse a conhecer as maldades do homem, as virtudes das flores,a persistência das sombras. obrigado pela atenção. e não querendo abusar, nem querendo protagonizar, seria muito gratificante se fizesse uma visita ao blog: movimentoestudante.blog.sapo.pt
e lesse o texto "temos medo"
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