APAGAR
Há horas em que, se pudesse, apagava tudo. Rasurava todas as horas, todos os dias, com um traço vermelho sobre o passado, sobre o presente e, a certas horas, também sobre o futuro. Acontece-me pensar assim, por exemplo, quando olho o palhaço de porcelana que está, neste momento, pendurado no puxador do contador da luz. Ele está ali pendurado como se fosse um ponteiro parado a rir-se de mim e das minhas horas apagadas, sabendo que atrás do seu sorriso a luz não pára, o contador não pára, segue indiferente à minha angústia porque a minha angústia nada conta para quem nos traz a luz a casa. A luz é-nos trazida através de cabos, pode matar-nos. A luz pode matar-nos. Dessa morte me intimidam as tomadas eléctricas, com um ar mais ameaçador do que trocista, e eu fico estancado na minha angústia. Mas penso: o sorriso do palhaço está avariado, a luz das tomadas é artificial. E ainda que a morte não seja, posso curtocircuitá-las, trazer-lhes o fogo às ventas, para depois, como um palhaço autêntico, rir da escuridão em que estarei, em que ficarei, em que serei uma hora apagada, rasurada, uma hora dentro da qual todo o tempo existe.
3 Comments:
(bela prosa)
belo!
Gosto. Muito.
Abraços,
Silvia
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