4.4.08

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #28e

UM RESTO A CONTA-GOTAS

(CONTINUAÇÃO)



já lá vão as seis da matina e o pedreiro
a sandes de fiambre sem manteiga
e o galão já andam por aí

o compêndio da comédia incrimina
o sorriso da dor estrangulada
na luz do pavio dos círios acesos
brilhando nas escamas do rabo da sereia
defronte ao presidente batendo punhetas
enquanto a secretária lhe penetra o polegar
cu acima e estraga-se tanta comida
por aí nos pratos defronte aos passeios

morresse com fome hoje
como ontem como sempre
quem é ele quem sou eu
o meu retrato é uma distância dolorosa
uma labareda de gente a dar e receber

nem todos os romances têm uma fractura
frésias no colo ou declarações eternas
estorvando os passos
de a ninguém pertencer

tira a espinha cravada no pé senão
ainda sangras as sombras das pegadas
com tão pouco saber
a sombra vestida dum resto de luar
ecoando sobre o despertar da tempestade
das substâncias do desejo
para uma injecção letal

parou o olhar em contraponto à vida

um suicídio atrapalha o tráfego
do espírito público

ele era a Cleópatra seu amor a serpente
e não há maior víbora do que a Mãe
das mães de manto branco
espelhando a glória dos escravos

nunca mais bis esta noite nunca mais

promete-me voltares para casa
esta noite ás cavalitas
num desesperado grito meu

sobrevoando a cremação pestilenta
de toda a nossa carne morta
malcheirosa seja numa frigideira ou
numa ruela amaldiçoada
algures no Zaire

amanhã é dia de finados e eu vou
tirar crude numa dessas praias mortas
dum coração abandonado onde avisto
um resto duma forma de rosto
que na verdade era uma palavra de vidro
dum antigo namoro

esta manhã
os telhados estão repletos de estrelas mortas
e eu cego no labirinto do poema inacabado

morrendo com a tinta envenenada de destino

daqui a pouco serão sete horas
e irei engolir mais uma noite de amargura
enquanto passeio de mão dada com as hulheiras
e o arcanjo pálido que tem estado sentado
toda a noite no parapeito da janela
com vista para o reino do abismo

vou-me embora no verde do loureiro
para libertar a alma
na escada da brutal sabedoria

acolá um resto de luz violeta
e a recordação do teu doce olhar

violeta violetas

muitos vasos com violetas
e muitas velas acesas ao redor do divã
no quarto onde a um canto me sentava no cadeirão
acenava e sorria aí para cima
ficando horas a conversar contigo

no tapete onde dormitava a dor
como um marinheiro enlouquecido
na espera impossível pela chegada
do navio trazendo o seu amado
de terras do sonho para o alívio

ontem disseste para seguir em frente
e procurar
um companheiro para completar a viagem

a chorar prometi ir à procura
dum desgraçado que nunca será amado
verdadeiramente abraçado e beijado
porque tudo o que em mim era verdade e luz
se foi
no dia em que partiste

velas acesas e violetas para ti
até ao fim da nossa história

gravaste com a morte uma tatuagem
de dor para além do sempre
no resto do meu coração

repito o teu nome
todas as manhãs. Todas
as manhãs repito o teu nome.
O teu nome, repito
todas as manhãs. Assim,
talvez um dia enlouqueça
sem saber,
o que é andar por andar.

Depressa, dá-me a mão e leva-me
para junto de ti.




Lisboa, Agosto de 2004


Jorge Aguiar Oliveira