2.5.08

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #40

O CAMARIM DAS LETRAS



Os dias correm num fio de trapézio sobre
um tapete minado. E tu falas de segurança
infantil, dos gorilas, das bestas, das baleias,
e eu não entendo do que falas. Essa segurança
tresanda a elixires eternos, a água-benta,
a formol, a medo da morte e eu e ela,
nunca entendemos nada sobre segurança.

Ao acordar lembrava-se dos sonhos
mareantes envelhecidos durante a passagem
da madrugada, apontando-os num caderno
cor púrpura. Amálgama de fantasias de cristal,
onde corpo algum sobrevivia aos golpes
dos cacos de vidro. Quis abandonar o mundo
trancando-se no apartamento. Deixou de comer,
largando as fezes no soalho e por lá
a sua carcaça frágil foi mirrando, sem forças
sequer para reciclar palavra alguma. Não abriu
a porta à filha, aos pais, aos amigos que
com os dedos no nariz, agoniavam
com o mau cheiro do desejo de morrer.

Roçando como um gato a ombreira da porta
desenterrei palavras suas num vento antigo
e um monstro veio crescer dentro de mim
para contrariar o seu desejo.
Perdoo-te por nunca me teres perdoado.

Os bombeiros montaram a escada, galgaram
a varanda partindo o vidro da janela
do falso camarim da frustrada actriz.

Ao voltar, continuou entre esvoaçantes fracturas
de invisíveis caminhos, deixando que a vida
lhe passasse entre charros, golos de rum,
ao som de rumbas riscados, como a sorte
curta da sua matriz em permanente tournée
com a lampreia de pernas de centopeia.

O seu caderno transformou-se na pedra
angular do passar para além do momento
do virar da contracapa para, de novo na capa,
suspirar. Ferrugens. Um suspiro é sempre
uma ferrugem. Se não tivesse preocupado
com o futuro da geração seguinte e
tem lido ao menos os novos contos
a um vagabundo qualquer, nunca teria
olhado para o rabo do locutor, quanto mais
ouvir a sua voz gravada a tinta
naquela carta envenenada
que a levou ao bafo do inferno.

Jorge Aguiar Oliveira