15.7.08

DUELO


Adão andava cabisbaixo nos corredores monótonos do jardim. Pressentindo a solidão do homem, Deus resolveu oferecer-lhe uma alegria. Rasgou-o, arrancou-lhe uma costela e daí criou a mulher. A mulher nasceu da tortura do homem, com o intuito de lhe ocupar os tempos livres e de trazer alguma rambóia ao Paraíso. De um parto assim coisa boa não era de esperar. As relações entre homens e mulheres hão-de ficar invariavelmente marcadas pela depressão pós-parto que atingiu Adão, o qual só não se suicidou por reverência e respeito a Deus. Mas o mundo nunca mais foi o mesmo. Os homens quiseram dominar as mulheres e, vendo-se muitas vezes por elas dominados, optaram então por dominar-se a si próprios na relação com o género oposto. É sabido que as três grandes religiões monoteístas advogaram sempre o carácter maléfico da mulher, a sua impureza. Voltados para Deus, os homens tornaram-se menos humanos que as mulheres. Lúcifer, que descido à Terra não resistiu aos encantos da humanidade, foi o único a ver na mulher aquilo que ela realmente é: o ser humano por excelência. Mas os homens, muito menos lúcidos que o anjo predilecto do Senhor, viam na mulher um animal perigoso. Impunha-se domesticar o animal. Inventaram, então, o casamento. O casamento resulta de uma misoginia ingénua, ou seja, um ódio à mulher que procura resolver-se na fé do amor. Mais vale casar-se do que queimar-se, diz-se na Primeira Carta aos Coríntios. Michel Onfray coloca bem o problema na sua Teoria do Corpo Amoroso, chamando a atenção para um ideal de vida que, temendo a concupiscência, os prazeres da carne, obriga os casais a «viverem a carne como se fossem um cadáver». Mas as ideias de casal, casamento e monogamia não têm na sua base apenas a intenção de um domínio sobre as inclinações da carne; elas são, antes de mais, fórmulas masculinas de exercitar o poder sobre a mulher. «Casar-se significa arranjar forma de lidar com a vida na base da ilusão, da mentira e da hipocrisia» - diz o filósofo francês. Mas se o casamento foi outrora uma tentativa de controlar a energia sexual, assim como uma manifestação de força do machismo sobre a mulher subjugada, o que é ele agora? A chamada libertação das mulheres trouxe-lhes, entre outras regalias, a possibilidade da libertinagem. Os bordéis já não são exclusivos do macho, a separação e o divórcio, assim como as novas formas de vida conjugal, a infidelidade, estão amplamente vulgarizados, a troca de casais, a ressurreição em força das orgias, são típicas de uma sociedade que vive muito mais voltada para o corpo, para os prazeres do corpo, que valoriza o deleite sexual em detrimento da constância matrimonial, contra «a morte do desejo, a condenação do prazer, uma desvalorização total da vida». Não acreditando já em paraísos metafísicos, homens e mulheres procuram concretizar na Terra os seus próprios ideais paradisíacos, a sua vida. No entanto, todo este cenário parece artificial. Quer na chamada libertação das mulheres, quer na ambição de domínio dos homens, o que está em causa, o que está sempre em causa, é a forma como conquistamos a nossa liberdade, a liberdade individual, e como essa liberdade pode ser conjugada com o desejo. O desejo faz-nos sentir amarrados, faz-nos sentir presos ao objecto desejado. Perante este sentimento, temos duas hipóteses: amarrar o outro ou não nos deixarmos amarrar pelo outro. Em ambos os casos, estamos a iludir a nossa liberdade. Ninguém é mais livre por satisfazer mais ou menos os seus desejos, até porque a intensidade do desejo varia muito de indivíduo para indivíduo. Há quem se satisfaça com pouco, há quem não passe sem muito. O donjuanismo não garante mais liberdade, garante apenas mais dores de cabeça. O problema reside na domesticação da vida, não no sentido de uma renúncia, mas no sentido de uma demarcação territorial que imporá os limites dentro dos quais a liberdade pode ser afirmada. Seja qual for a vida que cada um quiser levar, o problema reside, desde sempre, na ideia de que somos animais domésticos, domesticáveis, que é essa domesticação que garante a liberdade enquanto desvio, mais ou menos radical, da norma estabelecida. Creio que a vida é como um duelo entre o desejo e a liberdade, tendo um cemitério em plano de fundo, que se concretiza na capacidade de jogar a própria vida. Cada qual joga com as armas que tem. Mas haverá sempre aqueles que apenas estão na vida para cavar os buracos onde os mortos serão enterrados.