13.7.08

O POEMA

John Latham, God is Great # 1, 1989.

Tenho uma vaga imagem do circo que visitava o bairro. Era um circo pobre, ao pé da riqueza histriónica do próprio bairro. Tinha cães amestrados, malabaristas, ilusionistas e palhaços pobres. Todos os palhaços eram pobres naquele tempo, eram os palhaços perecidos “no rosto triste de Augusto”. Palhaços por mim herdados como se tivesse estado exposto a uma inevitável onda de contaminação. No bairro havia uma mulher que cozia pão todos os dias, uma taberna com um balcão de pedra mármore onde os penáltis de tinto eram batidos sem nunca quebrarem, havia uma mulher que personificava o queixume, um jogador de futebol titular no banco, uma mãe de oito filhos, um fadista itinerante, criadores de mulas que, aos olhos das crianças, pareciam cavalos puro sangue. As mesas eram de madeira, assim como as cadeiras. Sobre as mesas jogavam partidas de dominó os desempregados do dominó existencial que não arreda pé deste deserto. Porque só o sangue de um cavalo pode ser puro, o cavalo de um poema de cabelos grisalhos ao vento, o cavalo de um livro antigo a fazer-nos companhia no tiracolo da solidão. O meu sangue é o desses circos memoráveis, o sangue dos bairros onde os alguidares nunca cobriram o trabalho das facas. É o sangue cínico do “rosto triste de Augusto”. Nunca regresso a esses bairros por deles nunca ter saído, vivem no interior desguarnecido das minhas noites, acompanham-me sempre que me deito para ficar durante horas com os olhos colados ao tecto da insónia, a revolutear-me sobre a cama como se fosse um espírito inquieto perdido nos túneis do seu próprio covil. Ah! Se o bicho tivesse razão: «Eis o que revela um espírito inquieto: insegurança na apreciação própria, ambições pouco limpas, traços negros de carácter, que ainda mais se ensombram se pensarmos que o covil ali está e que nos pode dar paz, desde que consintamos em abrir-nos totalmente a ele». Mas não tem, o bicho estava errado, morreu dentro do estômago das suas próprias ambições. Porque as condições fazem toda a diferença, nenhum empréstimo pode incomodar mais do que o sabermo-nos há muito hipotecados. Caminhemos, então, na direcção das praias. Deixemos o corpo esturrar como se fosse uma bíblia lida pelo fogo divino. God is great. Mas queima. E os livros ardem nas suas mãos, mesmo quando incrustados no vidro glacial da esperança. Deus arde no imo do gelo, tal como os amantes na sombra da verdade, na sombra da árvore que está no meio do jardim, a morderem a maçã do pecado e a cuspirem os caroços contra a peçonha das serpentes. God is great. Dizem que escreve direito por linhas tortas. Sejamos todos as linhas onde ele escreve direito a nossa tortura.