"O APELO DO SOBRESSALTO"
Tirei parte do dia para apagar e-mails, versão moderna de queimar cartas. Dizem existir nos escorpiões uma tendência regenerativa que se manifesta em impulsos destrutivos tendo em vista uma reconstrução permanente da vida. É provável que tenhamos nascido marcados pelo estigma de Sísifo, o deus refractário que acabou condenado a uma missão impossível. No caso, a missão impossível é a reconstrução permanente da vida. Porque a vida não se reconstrói, apenas se constrói – mesmo quando se destrói. É sempre um andar para a frente sem retorno possível ao passado que vai ficando arrumado no estômago voraz do esquecimento. Hoje, ao queimar umas boas duas centenas de e-mails, deparei-me com muitas dessas iguarias esquecidas que vão alimentando o grande monstro. Vou continuar a queimar muitas daquelas ilusões, contactos, pedidos, elogios, sugestões, convites, algumas mensagens engraçadas de leitores ofendidos, uma ou outra ameaça – chamam-lhe hate mails, mas eu, que respeito muito o hate, vejo sempre neles uma paixão indisfarçável -, gente que me chega com intrigas, outros pedindo-me equivocadas satisfações, polémicas, declarações de amor – chamam-lhe love mails, mas eu, que respeito muito o love, vejo sempre neles uma paixão indisfarçável -, leituras simpáticas, contribuições, ofertas de trabalho, etc, etc, etc… Tenho tido sorte. Uma sorte que está longe de ser uma fortuna, mas não me posso queixar. Levo cinco anos desta coisa dos weblogs. O meu primeiro post foi publicado, precisamente, a 22 de Julho de 2003, poucos meses depois de ter publicado um livro intitulado Antologia do Esquecimento e de me ter nascido a primeira filha. Foi um ano que mudou a minha vida, esse ano de 2003. O primeiro post, assinado com o nick OMOero, intitulava-se Um saco de roupa suja; apareceu no meteórico weblog A Máquina de Lavar Sopa. Logo a seguir fiz muitas promessas e arrependi-me imediatamente: eu prometo nunca mais queimar o dedo indicador, prometo cagar baixinho, prometo ser bom pai e bom marido e bom dono de cão, prometo ir às ilhas um dia destes, prometo ler todos os livros do Santo Agostinho, prometo nunca mais ligar a televisão em dias de sol, prometo beber na medida do possível tanto quanto o fígado admitir, prometo ser amigo das melgas, prometo ficar à frente no concerto do Tarzan Boy, prometo dizer bem dos meus amigos aos meus maiores inimigos – eu tenho inimigos, são parecidos com os meus amigos –, eu prometo dinamitar a terra do nunca, ir à pesca com o Luís um destes dias, nunca mais dizer mal do rock que se faz nas Caldas, eu prometo ser um cidadãozinho competente, daqueles que quando são chamados a intervir atam bem as solas para não escorregar, eu prometo-me por ti adentro quando tu deixares, eu prometo... limpar-me a seco. De certa forma, é o que tenho vindo a fazer desde então. Limpar-me a seco. E tem sido a limpar-me a seco que a sorte me tem batido à porta, que muita gente tem caído no correio electrónico a dizer coisas como esta: já abri a caixinha dos comentários mais de mil vezes. Deixo lá uma pequena lágrima de cada vez, tão pequena que não se vê. Plena de emoção. É um e-mail de 29 de Janeiro de 2005. À época eu chamava-me Juraan Vink e o weblog, cujo fim estava anunciado, era o Universos Desfeitos. Obedecendo aos tais impulsos “escorpiónicos”, o universo foi desfeito. O e-mail tem sobrevivido estes anos todos, esquecido entre outros milhares de e-mails que ando agora a apagar. Mas ainda ontem recebi um que me comoveu bastante, e, ao lê-lo, pensei mais uma vez na sorte que tenho tido e no miserável que sou sempre que me queixo da sorte que não tenho. Há um percurso humano a construir-se nestas redes virtuais, há uma história no começo e nós estamos a ser parte integrante dela. Daqui a uns anos, daqui a uns bons anos, quando a Internet for uma ferramenta comunicacional obsoleta, haverá quem olhe para os e-mails que agora apago como eu olho hoje as cartas que escrevi às primeiras namoradas. Verão nesses e-mails manifestações de afecto que a palavra imprime no espaço sobressaltado do reconhecimento. Vistos de perto, parecem meros e-mails. Olhados à distância, são uma nova caligrafia onde podemos reconhecer o rosto dissimulado, íntimo, de quem diariamente sai para a rua disfarçado com o seu próprio corpo. São uma nova teia afectiva em amena deflagração. São um constante "apelo do sobressalto".
1 Comments:
não tem mal, henrique, eu volto a enviar :)
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