O pensamento nas mãos #12
Para a Sofia Lourenço
Martha Argerich a tocar o Romance do Concerto para piano e orquestra nº1 em mi menor de Chopin
Que tem acompanhado esta série com enorme entusiasmo e deixou este comentário no post anterior:
CHOPIN: UM INVENTÁRIO
Quase sessenta mazurkas; cerca de trinta estudos;
duas dúzias de prelúdios; uma vintena de nocturnos;
umas quinze valsas; mais de uma dúzia de «polonaises»;
«scherzos», improvisos, e baladas, quatro de cada;
três sonatas para piano; e dois concertos para piano e orquestra,
uma "berceuse", uma barcarola, uma fantasia, uma tarantela, etc.,
além de umas dezassete canções para canto e piano; uma tuberculose mortal;
um talento de concertista; muitos sucessos mundanos; uma paixão infeliz;
uma ligação célebre com mulher ilustre; outras ligações sortidas;
uma pátria sem fronteiras seguras nem independência concreta;
a Europa francesa do Romantismo; várias amizades com homens eminentes;
e apenas trinta e nove anos de vida. Outros viveram menos, escreveram mais,
comeram mais amargo o classicamente amargo pão do exílio, foram ignorados
ou combatidos, morreram abandonados, não se passearam nas alcovas
ou nos salões da glória, confinaram-se menos ao instrumento que melhor
[dominavam,
e mesmo foram mais apátridas sofrendo de uma pátria que não haja.
Além disso, quase todos escaparam mais à possibilidade repelente
de ser melodia das virgens, ritmo dos castrados,
requebro de meia-tijela, nostalgia dos analfabetos,
e outras coisas medíocres e mesquinhas da vulgaridade, como ele não. Ou de ser
prato de não-resistência para os concertistas que tocam para as pessoas que
[julgam
que gostam de música mas não gostam. Ainda por cima
era um arrivista, um pedante convencido da aristocracia que não tinha,
um reaccionário ansiando por revoluções que libertassem as oligarquias
da Polónia, coitadinhas, e outras. E, para cúmulo,
a gente começa a desconfiar de que não era sequer um romântico,
pelo menos da maneira que ele fingiu ser e deixou entender que era.
Uma arte de compor a música como quem escreve um poema,
a força que se disfarça em languidez, um ar de inspiração
ocultando a estrutura, uma melancolia harmónica por sobre
a ironia melódica (ou o contrário), a magia dos ritmos
usada para esconder o pensamento - e escondê-lo tanto,
que ainda passa por burro de génio este homem que tinha o pensamento nos dedos,
e cuja audácia usava a máscara do sentimento ou das formas livres
para criar-se a si mesmo. Tão hábil na sua cozinha, que pode servir-se
morno, às horas da saudade e da amargura,
quente, nas grandes ocasiões da vida triunfal,
e frio, quando só a música dirá o desespero vácuo
de ser-se piano e nada mais no mundo.
Madison, 19/12/1966
Jorge de Sena, Poesia II, Arte de Música, pp. 184-185, Edições 70, Lisboa, 1988.
Maria João
5 Comments:
Cara Maria João,
mais este lindíssimo vídeo com a estupenda pianista argentina Martha Argerich (que anda agora pelos seus 60 e poucos anos), vencedora do Concurso Chopin em Varsóvia quando tinha apenas 18 anos: ela toca Chopin como eu gosto, conhece bem a "força que se disfarça com languidez", assume o "ar de inspiração ocultando a estrutura", está aqui tudo, nada a dizer.
E mais importante ainda, a parte que mais me desconcerta e congratula,
a "de ser-se piano e nada mais no mundo".
Muito obrigada pela dedicatória e pela simpatia.
É mesmo um prazer deambular pelos caminhos musicais e da vida, portanto.
E podes continuar, se quiseres, claro.
Abraço,
Sofia
Sofia!? Olá!
Abraço para ti.
O texto de Jorge de Sena é um poema - está explicitamente organizado em versos... longos, mas versos - e faz parte do livro "Arte de Música", de 1968, q foi incluído em "Poesia II" (1ª ed. de 1978, 2ª de 1988 - ambas das edições 70).
Já agora, fica a nota do Autor a este poema: "Chopin é uma praga dos estudos de piano e das salas de concertos, e a minha contraditória admiração por ele só se positivou após a leitura benéfica de André Gide sobre a sua música. Do próprio teor do poema se depreende que este se não liga a nenhuma particular execução de qualquer obra sua."
agora com o poema completo, graças ao rigor do Henrique, ficamos ainda mais felizes :), Jorge de Sena e Chopin sugeridos por uma pianista, e Chopin intrepretado por uma belissima pianista sugerida por mim.
Um abraço a todos
Maria João
Parece-me melhor assim, todo o poema de Sena, na versão integral. Ele merece mesmo ser lido na íntegra.
Muito a propósito, a nota do Jorge de Sena sobre o Gide. Também li e apreciei esse "Notes sur Chopin"(1949) de André Gide; este autor viveu no tempo de Anton Webern e outros modernistas, e no entanto escrevia sobre Chopin de forma surpreendente e original.
Uma correcção: a Martha Argerich afinal é menos precoce do que eu pensava- tinha 23 anos quando ganhou o concurso Chopin.
Abraço e um beijinho para a Sara.
Sofia
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