AINDA A POESIA
O Luís Filipe Cristóvão dá continuidade à reflexão atacando “duas ideias feitas sobre poesia”: “somos um país de poetas”, “a poesia não vende”. Sobre esta última ideia importa recordar que o mesmo autor, também editor e livreiro, já havia afirmado o seguinte: a poesia, mesmo a famosa, pouco ou nada vende, as livrarias, na sua maioria, não lhe reservam espaço, os jornais tanto menos, as editoras olham-na como uma possibilidade de prestígio mais do que um verdadeiro programa editorial. Acrescenta agora que quando lhe dizem que a poesia não vende, a primeira coisa que lhe vem à cabeça é a quantidade de coisas que não vendem. A quantidade de romances que não vendem, as peças de teatro que não vendem, os livros de astrologia que não vendem, os livros de história que não vendem, os livros infantis que não vendem. Se olharmos neste momento para o Top 10 da FNAC, encontraremos, na sua maioria, os chamados livros de auto-ajuda, romances de jornalistas famosos, biografias de gente mediática, um ex-treinador de futebol, um ex-investigador da Polícia Judiciária, etc. Belo cenário. Gostava que me explicassem onde andam os grandes escritores do meu tempo. Gostava que me explicassem quem são os grandes escritores de sempre que venderam muito no seu tempo. Gostava que me explicassem se vender muito ou vender pouco deve ser critério para alguma coisa. Gostava que me explicassem o que é vender muito e o que é vender pouco conforme os géneros em causa. Gostava que me explicassem por que razão nunca se terá publicado tanta poesia como agora. Masoquismo dos editores? É cada vez mais difícil determinar a média de exemplares produzidos de um livro de poesia. Raramente esses números aparecem referidos. Haverá livros dos quais se fazem 1000 exemplares e não vendem 200; outros haverá dos quais de fazem 200 e podiam ser feitos 1000; por vezes pedem-se reposições, outras vezes são muitas as devoluções. Tudo dependerá de muita coisa: da popularidade do autor, do estatuto que conquistou no meio literário, da distribuição, da divulgação, dos lançamentos, de pormenores que por vezes nos escapam como, por exemplo, se o autor é professor numa Faculdade de Letras (os alunos correm a comprar), da predisposição do autor para sessões de leitura, lançamentos, feiras do livro, da divulgação nos meios de comunicação (weblogs incluídos), do tamanho da família, de afinidades diversas, etc. Eu não sei se a poesia não vende ou se vende pouco. Sei que são poucos os livros que vendem muito. Sei que são ainda menos os livros bons que vendem muito. E sei que são ainda menos os livros bons que vendem muito e são lidos. O que eu estranho, e isso prende-se com a outra ideia feita atacada pelo Luís Filipe Cristóvão no seu post, é que num chamado “país de poetas” os livros de poesia, na sua generalidade, tenham edições tão limitadas. Várias causas explicarão este fenómeno paranormal. A primeira é fácil de entender: quem um dia disse que somos um país de poetas queria dizer, na verdade, que somos um país de patetas. Um problema de dislexia explica o equívoco. Há, sem dúvida, muita gente a escrever poesia. Qualquer pessoa escreve poesia e, com a maior das facilidades, publica um livro de poemas. Ainda bem. Sejamos felizes enquanto vivos que depois de mortos ninguém nos cobrará dívidas. A verdade é esta: a maior parte dessa gente que escreve poesia raramente lê poesia, mais raramente ainda compra livros de poesia. Escrevem poemas como quem afaga o pêlo do gato, prescindem das referências (leram uns versos de Camões, de Pessoa, de Florbela [na escola] e chega-lhes bem), isentam-se do espírito autocrítico que, quanto a mim, é imprescindível em qualquer actividade. A poesia nunca foi uma actividade comercial. Circunstâncias houveram em que encheu estádios, anfiteatros, salões imponentes, tabernas, lupanares, clubes privados, livrarias, festivais... Pode andar nas bocas do povo através de canções que popularizam os poemas ou de acasos indetermináveis, mas nunca foi vendável como sabonetes. No vídeo acima, o poeta Ferreira Gullar diz que talvez isso seja bom. Muitas vezes o facto de se transformar uma actividade como a poesia numa coisa comercial compromete a própria natureza da actividade poética. A actividade poética é aleatória. Ninguém pode determinar quantos poemas vai escrever num dia. Haverá quem o faça, haverá até quem sonhe com poesia a metro, haverá quem escreva poemas como se estivesse num confessionário, a orar ao senhor das trevas ou a pedir perdão pelos seus pecados, haverá até quem veja nessa incontinência um estro excepcional, quem se limite a prosar diaristicamente o que depois parte em verso, as nostalgias dos paraísos perdidos ou a melancolia de quotidianos liricamente desassossegados. Haverá de tudo um pouco, sendo que pouco é o que podemos esperar disto tudo.
11 Comments:
quem escreve poesia sem ler poesia? Agora, Henrique, enterraste o dedo na ferida. Não posso estar mais de acordo contigo.Aliás, é mais do que visível, tendo uma livraria...
Luís, sobre esse assunto muito haveria a dizer. Vou contar duas histórias caricatas que se passaram comigo. Cada um retire as conclusões que quiser:
1.ª Ainda há não muito tempo, uma ex-aluna veio ter comigo e perguntou-me o que era preciso para publicar um livro (não foi a primeira, nem a segunda, nem a terceira, espero que tenha sido a última). Eu disse-lhe que primeiro era preciso escrevê-lo, mas para isso era fundamental ler muito. Ela pareceu-me ter levado a resposta na brincadeira, embora eu não pudesse estar a falar mais a sério. No entanto, o poeta era o namorado. Escrevia umas coisas num blog, tinha muitos poemas escritos e gostava de publicar um livro. Comecei a pensar que seria muito fácil fazê-lo: juntava uns tostões ou arranjava um patrocínio, contactava uma dessas editoras que vendem as edições dos livros ao próprio autor e estava feito. Não lhe dei estas dicas, pensando que talvez estivesse a fazer mal. Assim como não aprecio coitos interrompidos, detesto interromper os sonhos de alguém. Quis falar com o rapaz. Perguntei-lhe que autores gostava de ler. A resposta não podia ser mais esclarecedora. Reproduzo-a tal como a ouvi: «Eu não gosto de ler. Eu gosto mesmo é de escrever».
2.ª Esta segunda história passou-se há mais tempo. Em conversa com uma jovem poeta num bar muito bem frequentado, surgiu o tema da poesia. Eu escrevo assim, eu escrevo assado, eu escrevi isto, eu conheço este, eu conheço aquele, etc e tal. Se foi pelo grau etílico, por pura sacanice ou, mais provável, por estar completamente enfadado com a conversa, comecei a debitar nomes de autores inventados. Inventava o nome do autor e, como a verve era muita, arranjava-lhe logo um título para um livro e, por vezes, até uma editora. Pois fica tu sabendo que a moça já conhecia aqueles autores todos. É certo que, de alguns, ouvira apenas falar. De outros, tinha lido umas coisas em revistas. Mas muitos houve que ela até já tinha lido em livro e achava espectacular, fenomenal, genial, maravilhoso, magnifico, não tenho palavras.
São apenas duas histórias, eu sei. Podia contar outras. Conto estas «para poupar o embaraço aos meios culturais do país».
País de patetas?
Eu costumo dizer isso, e existe um lusitano num dos livros do Asterix que a única coisa que sabe fazer é ler um poema... não me lembro qual dos livros é, mas é um personagem!E se fores de viagem, em qualquer canto do mundo, hás-de encontrar um português que te confessa que também escreve uns poemas, coisa bonita!
:)
Maria João
muito bem dito
Nas prisões toda a gente escreve poesia, mesmo que só tenha ténues noções de ortografia para não falar do resto. Como explicou muito bem o Dr. Alexandre, psicólogo numa delas:
"Estão presos, para que é que lhes havia de dar senão para a poesia?"
Também poderia dizer: "cometeram crimes, agora só lhes apetece poesia!
"Gostava que me explicassem quem são os grandes escritores de sempre que venderam muito no seu tempo."
Victor Hugo? Pelo menos acreditando na biografia do Graham Robb.
já ouvi várias pessoas que escrevem poesia, dizerem que não lêm outros poetas, como medo de influências...
acho a coisa estranha, mas...
como gosto de ler, vai tudo, romances, contos, poesia, ensaio, etc. , só espero boas influências...
Eu gosto de comprar e de ler todos os géneros literários. A poesia vende-se, sim, mas a produção deste género literário não pode comparar-se com a de outro qualquer. A poesia vem de dentro, de um conjunto de sentires que às vezes não é fácil passar a palavras.
Um abraço.
a questao das influencias. eu escrevo poesia e leio quase exclusivamente poesia portuguesa. nao para me ajudar a escrever, mas porque realmente gosto. e nela que sinto que tenho que procurar o prazer da leitura.
mas depois, voltando à polemica anterior, temos as tais atitudes de "acusar o poeta x de ser caixinha de eco do poeta y", ou "o poeta z fez aquilo que o poeta j ja tinha feito".
como se no fundo nao fossem todos os poetas em maior ou menor escala caixinhas de eco de outros poetas. a nova poesia faz-se em dialogo com a anterior. seja em continuidades ou oposiçoes.
é preciso é que o eco seja limpido e tenha algo para nos dar.
ocorreu-me agora que o Gonçalo M Tavares não é mencionado no artigo do ípsilon. Pior ainda: eu não sou mencionado. Estou indignadíssimo, indignadíssimo, indignadíssimo.
Nunca publiquei nada nem sou "poeta", mas que diabo, um gajo tem o direito à indignação, não é?
(a discussão estava demasiado elevada, alguém tinha de vir aqui dar um toque de realidade. Não agradeçam que começo já a corar)
Caro Henrique, completamente de acordo. No entanto, há aquela ideia de Lautréamont de que a poesia deve ser feita por todos. E depois, não sei, qualquer gajo pode escrever um poema e deve fazê-lo mesmo que não leia. Escrever um poema é tão natural como mijar ou cagar. Quanto à publicação, estamos conversados.
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