TRÊS QUESTÕES, O MESMO ASSUNTO
- Foram os anos 80 uma década um tanto falhada na poesia portuguesa?
A pergunta surge na sequência de um parágrafo do artigo “Há sangue novo na poesia portuguesa”, da autoria de Luís Miguel Queirós (Ípsilon, Público, 12 de Setembro de 2008): «Olhando para trás, ocorre mesmo perguntar se a discutível imagem que hoje se tem dos anos 80 como a de uma década um tanto falhada, ou incaracterística, na poesia portuguesa, não ficará a dever-se bastante ao facto de os seus poetas não terem tido críticos que separassem águas e fossem verdadeiros formadores de gosto.» Não se afirma aqui senão uma eventual e discutível imagem dos anos 80 como uma década um tanto falhada na poesia portuguesa. A existir em alguém essa imagem, ela só pode ser explicada pela ignorância ou pelos preconceitos (o que, diga-se de passagem, vai dar ao mesmo). Adoptemos a data de publicação da primeira obra como critério para a fixação de uma década de poetas portugueses: Inês Lourenço (1980), Vergílio Alberto Vieira (1980), Bernardo Pinto de Almeida (1981), Jorge Sousa Braga (1981), Gil Nozes de Carvalho (1982), A. Dasilva O. (1982), Amadeu Baptista (1982), Jorge Aguiar Oliveira (1983), Fernando Luís Sampaio (1983), Jorge Fazenda Lourenço (1983), Ana Mafalda Leite (1984), Adília Lopes (1985), Manuel Fernando Gonçalves (1985), Carlos Poças Falcão (1987), Teresa Rita Lopes (1987), etc… Podia citar muitos outros. Basta folhear uma antologia como Sião. No entanto, olhamos para esta lista e vêm-nos à memória outros nomes que facilmente associamos à década de 80. A maior parte deles estrearam-se em 1979: António Cabrita, Emanuel Jorge Botelho, Isabel de Sá, José Emílio-Nelson e aquele que é, para mim, o grande poeta português dessa década: Luís Miguel Nava. Década falhada? Não me parece.
- Tiveram os poetas acima mencionados críticos que separassem as águas e fossem verdadeiros formadores de gosto?
Tiveram (têm?), como outros antes deles e depois deles, críticos mais ou menos atentos às suas obras, mais ou menos empenhados na reflexão das mesmas, mais ou menos predispostos a divulgá-las. Mas esta questão é complicada, pois entrega ao crítico o papel de formador de gostos e separador das águas (dos leitores, dos autores, de ambos porque quase sempre se confundem). Não voltarei ao problema da crítica, mais que debatido nestas e noutras lides, embora não possa deixar de referir que jamais os críticos produziram em mim tal efeito. Que os críticos se julguem Moisés do gosto é uma coisa. Outra, bem diferente, é que o sejam. Os críticos servem para criticar, actividade que tem vindo a abreviar-se em quase todos os domínios (a excepção parece ser a crítica aos críticos). Divulgar e promover, em função de afinidades, interesses, deslumbramentos momentâneos, inclinações pessoais, por mero gosto ou por profissão, não é criticar. A crítica implica tempo, distância, reflexão, é trabalho árduo e sério, mesmo que, por felicidade ou infelicidade, não venha a contribuir para separar águas e formar gostos. Não gosto de perder de vista que o Livro de Cesário Verde só apareceu depois da morte do poeta e foi editado por um amigo. Quando Cesário morreu, o jornal onde se estreara, o Diário de Notícias, recordou o “malogrado poeta e comerciante”, o “moço de notável talento”… Morreu praticamente ignorado. Os críticos da sua época não terão tido a perspicácia que tiveram certos críticos posteriores. Enquanto leitor, não foram os críticos que me levaram a alguns dos poetas do séc. XX que mais admiro: de Jorge de Sena a Mário Cesariny, de Alexandre O’Neill a Ruy Belo, etc… Foram os amigos, foi a curiosidade, foram outros autores. O facto de João Gaspar Simões ter classificado de “vazia” e “retórica” a escrita de Maria Gabriella Llansol nunca me aqueceu nem arrefeceu. Continuei a comprar os livros da autora. Enquanto autor, faço questão de estar atento aos meus contemporâneos e a outros, ao que vai acontecendo e ao que, estranhamente, fica por acontecer. Gosto de ler Manuel de Freitas, mas acho inconcebível tê-lo como referência. Referência é Malcolm Lowry. E depois a gente vai aos clássicos, aos gregos e aos romanos, e repara que sempre a criação surgiu do conflito e do confronto: idealistas e materialistas, espiritualistas e realistas, estóicos e epicuristas… Não é o facto de ver a obra de Nuno Moura lançada na penumbra pelos críticos que me impede de ser seu leitor e admirador. Somos amigos? Temos projectos em comum? Deverá isso impedir-me de admirar a sua obra? Talvez os críticos de hoje não sejam menos desatentos do que os críticos no tempo de Cesário.
- Há uma geração de poetas portugueses do século XXI?
O título aparece apenas na capa do Ípsilon. É um título apelativo, com sentido comercial, provoca o debate, a desconfiança. É um bom título mas não passa disso. Qualquer pessoa com um palmo de testa lê aquele título e interroga-se: mas qual século XXI? O século XXI mal começou e já querem encontrar nele uma geração de poetas portugueses? Depois fala-se em “novíssimos”. Sempre se falou de “novíssimos”. Os “novíssimos” da antologia organizada por M. Alberta Meneres e E. M. de Melo e Castro, em 1971, estão hoje velhos, caquécticos, mortos, transformados em pó e esquecimento (estou a ser hiperbólico). Alguns continuam a escrever, outros afirmaram-se como grandes poetas, outros desapareceram do mapa. É sempre assim. No entanto, à época, couberam na mesma antologia Sebastião da Gama (estreado em 1945) e um tal de Domingos Iglésias (estreado em 1970). 25 anos separam a estreia destes dois autores. É obra. Agora são-nos oferecidos uns camaradas que tudo o que fizeram terão feito, no máximo, em apenas 6 anos. Extraordinários anos, estes entre 2002 e 2008, que nos permitem já falar de sangue novo e de críticos alvoroçados. É tudo tão rápido hoje em dia, há tanta urgência na emergência, o mundo está tão acelerado que 6 anos parecem 25. A poesia portuguesa não está a renovar-se, está a fazer-se como sempre se fez. Porque a poesia faz-se. Por um mistério indecifrável, há milhares de anos que a poesia se vai fazendo e continuará a fazer-se. Com sangue novo, com velho sangue renovado, com o novo sangue dos velhos, com os velhos de sangue novo, com o velho sangue dos novos.
A pergunta surge na sequência de um parágrafo do artigo “Há sangue novo na poesia portuguesa”, da autoria de Luís Miguel Queirós (Ípsilon, Público, 12 de Setembro de 2008): «Olhando para trás, ocorre mesmo perguntar se a discutível imagem que hoje se tem dos anos 80 como a de uma década um tanto falhada, ou incaracterística, na poesia portuguesa, não ficará a dever-se bastante ao facto de os seus poetas não terem tido críticos que separassem águas e fossem verdadeiros formadores de gosto.» Não se afirma aqui senão uma eventual e discutível imagem dos anos 80 como uma década um tanto falhada na poesia portuguesa. A existir em alguém essa imagem, ela só pode ser explicada pela ignorância ou pelos preconceitos (o que, diga-se de passagem, vai dar ao mesmo). Adoptemos a data de publicação da primeira obra como critério para a fixação de uma década de poetas portugueses: Inês Lourenço (1980), Vergílio Alberto Vieira (1980), Bernardo Pinto de Almeida (1981), Jorge Sousa Braga (1981), Gil Nozes de Carvalho (1982), A. Dasilva O. (1982), Amadeu Baptista (1982), Jorge Aguiar Oliveira (1983), Fernando Luís Sampaio (1983), Jorge Fazenda Lourenço (1983), Ana Mafalda Leite (1984), Adília Lopes (1985), Manuel Fernando Gonçalves (1985), Carlos Poças Falcão (1987), Teresa Rita Lopes (1987), etc… Podia citar muitos outros. Basta folhear uma antologia como Sião. No entanto, olhamos para esta lista e vêm-nos à memória outros nomes que facilmente associamos à década de 80. A maior parte deles estrearam-se em 1979: António Cabrita, Emanuel Jorge Botelho, Isabel de Sá, José Emílio-Nelson e aquele que é, para mim, o grande poeta português dessa década: Luís Miguel Nava. Década falhada? Não me parece.
- Tiveram os poetas acima mencionados críticos que separassem as águas e fossem verdadeiros formadores de gosto?
Tiveram (têm?), como outros antes deles e depois deles, críticos mais ou menos atentos às suas obras, mais ou menos empenhados na reflexão das mesmas, mais ou menos predispostos a divulgá-las. Mas esta questão é complicada, pois entrega ao crítico o papel de formador de gostos e separador das águas (dos leitores, dos autores, de ambos porque quase sempre se confundem). Não voltarei ao problema da crítica, mais que debatido nestas e noutras lides, embora não possa deixar de referir que jamais os críticos produziram em mim tal efeito. Que os críticos se julguem Moisés do gosto é uma coisa. Outra, bem diferente, é que o sejam. Os críticos servem para criticar, actividade que tem vindo a abreviar-se em quase todos os domínios (a excepção parece ser a crítica aos críticos). Divulgar e promover, em função de afinidades, interesses, deslumbramentos momentâneos, inclinações pessoais, por mero gosto ou por profissão, não é criticar. A crítica implica tempo, distância, reflexão, é trabalho árduo e sério, mesmo que, por felicidade ou infelicidade, não venha a contribuir para separar águas e formar gostos. Não gosto de perder de vista que o Livro de Cesário Verde só apareceu depois da morte do poeta e foi editado por um amigo. Quando Cesário morreu, o jornal onde se estreara, o Diário de Notícias, recordou o “malogrado poeta e comerciante”, o “moço de notável talento”… Morreu praticamente ignorado. Os críticos da sua época não terão tido a perspicácia que tiveram certos críticos posteriores. Enquanto leitor, não foram os críticos que me levaram a alguns dos poetas do séc. XX que mais admiro: de Jorge de Sena a Mário Cesariny, de Alexandre O’Neill a Ruy Belo, etc… Foram os amigos, foi a curiosidade, foram outros autores. O facto de João Gaspar Simões ter classificado de “vazia” e “retórica” a escrita de Maria Gabriella Llansol nunca me aqueceu nem arrefeceu. Continuei a comprar os livros da autora. Enquanto autor, faço questão de estar atento aos meus contemporâneos e a outros, ao que vai acontecendo e ao que, estranhamente, fica por acontecer. Gosto de ler Manuel de Freitas, mas acho inconcebível tê-lo como referência. Referência é Malcolm Lowry. E depois a gente vai aos clássicos, aos gregos e aos romanos, e repara que sempre a criação surgiu do conflito e do confronto: idealistas e materialistas, espiritualistas e realistas, estóicos e epicuristas… Não é o facto de ver a obra de Nuno Moura lançada na penumbra pelos críticos que me impede de ser seu leitor e admirador. Somos amigos? Temos projectos em comum? Deverá isso impedir-me de admirar a sua obra? Talvez os críticos de hoje não sejam menos desatentos do que os críticos no tempo de Cesário.
- Há uma geração de poetas portugueses do século XXI?
O título aparece apenas na capa do Ípsilon. É um título apelativo, com sentido comercial, provoca o debate, a desconfiança. É um bom título mas não passa disso. Qualquer pessoa com um palmo de testa lê aquele título e interroga-se: mas qual século XXI? O século XXI mal começou e já querem encontrar nele uma geração de poetas portugueses? Depois fala-se em “novíssimos”. Sempre se falou de “novíssimos”. Os “novíssimos” da antologia organizada por M. Alberta Meneres e E. M. de Melo e Castro, em 1971, estão hoje velhos, caquécticos, mortos, transformados em pó e esquecimento (estou a ser hiperbólico). Alguns continuam a escrever, outros afirmaram-se como grandes poetas, outros desapareceram do mapa. É sempre assim. No entanto, à época, couberam na mesma antologia Sebastião da Gama (estreado em 1945) e um tal de Domingos Iglésias (estreado em 1970). 25 anos separam a estreia destes dois autores. É obra. Agora são-nos oferecidos uns camaradas que tudo o que fizeram terão feito, no máximo, em apenas 6 anos. Extraordinários anos, estes entre 2002 e 2008, que nos permitem já falar de sangue novo e de críticos alvoroçados. É tudo tão rápido hoje em dia, há tanta urgência na emergência, o mundo está tão acelerado que 6 anos parecem 25. A poesia portuguesa não está a renovar-se, está a fazer-se como sempre se fez. Porque a poesia faz-se. Por um mistério indecifrável, há milhares de anos que a poesia se vai fazendo e continuará a fazer-se. Com sangue novo, com velho sangue renovado, com o novo sangue dos velhos, com os velhos de sangue novo, com o velho sangue dos novos.
6 Comments:
sinceramente, prefiro não deixar os poetas dependentes dos críticos. os críticos têm de facto um certo poder, e um papel enquanto formadores de gosto... mas convém não esquecer o que está entre duas capas, que não muda.
também acho complicado falar em década falhada. além disso ainda se podia pensar em nomes que publicaram pela primeira vez nos últimos 5 anos de 70 mas que tiveram produção constante e sólida nos anos 80.
o "sião" - quando a li ainda pouco conhecia de poesia portuguesa para lá dos nomes conhecidos do grande público, e que bem fiz em comprá-la, na altura por mera curiosidade.
Não reconhecendo nos críticos a capacidade de prescritor de leituras, julgo que o trabalho de crítica está hoje um tanto moribundo, ora porque na Universidade não há uma real necessidade de acompanhar o que vai sendo feito no romance e na poesia, ora porque nos jornais não há espaço, ora ainda porque fora disso, pouco tempo sobra.
O trabalho que o Henrique Fialho faz, nos seus blogues, é meritório porque é uma tentativa de dar uma voz à leitura da poesia - precisaria, provavelmente, de mais tempo e de algum apoio(autores e editores que lhe enviassem os livros), para o fazer de uma forma sistematizada.
O espaço está encontrado, a blogosfera. Para além do Henrique, estou seguro que mais algumas pessoas têm condições e estariam disponíveis para o fazer. Falta saber se a indústria da poesia (quem a edita, quem a escreve) está realmente interessado em ter um olhar crítico (disponível para ouvir a crítica à crítica, também) sobre o seu trabalho.
Acho que aqui, começa uma discussão completamente diferente. Mas, estou seguro, não menos interessante...
Nada me tem impedido de gostar imenso da obra de Fernando Guerreiro.
Artur
Grande Artur, assim é que se fala. O Fernando Guerreiro é um dos meus poetas de eleição. Tenho as primeiras edições, da década de 70. Não o referi por ele vir dos 70ssss. Que bom saber de quem leia o Fernando Guerreiro. É tão raro. Escrevi umas coisitas sobre livros dele aqui e podem encontrar um poema dele, como foto rara, aqui.
O que o Henrique faz nos seus blogs fá-lo por não saber viver sem a escrita, sem os livros e porque todos os dias lhe saem palavras e versos pelas pontas dos dedos. Os livros de que o LFC fala vão, pelo que me apercebo, chegando às suas mãos, quer através das editoras, quer dos próprios autores. Quando escreve sobre algum livro fá-lo pela vontade da partilha, pela divulgação, pela liberdade de o poder fazer. A diferença é que não lhe pagam para ele o fazer.
Falou e disse a Ana.....
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