O COSTUME
Ontem fui jantar umas sapateiras recheadas na companhia do Mário Calado Pedro. As sapateiras são caranguejolas e “Caranguejola” é o título de um dos meus poemas preferidos, cujo autor, Mário de Sá-Carneiro, faleceu em Paris, com 26 anos, depois de ter metido ao bucho uns frasquinhos de estricnina. Eu e o Mário optámos por uma garrafa de Muralhas. Gostamos muito de artistas que morrem jovens, mas preferimos a vida.
Durante o jantar chegámos a várias conclusões sobre as quais não me deterei mais do que uma linha:
- o islamismo é mais democrático que o catolicismo;
- o maior problema de Portugal é não ter verdadeiramente problema algum;
- o tempo das hegemonias acabou (abro uma excepção à hegemonia dos excluídos);
- o facto dos europeus estarem em vias de extinção deve colocar-nos optimistas perante o futuro;
- na sua subserviência à razão, o pensamento científico ocidental foi sempre muito irracional nos modos de encarar os saberes dos povos ditos “menos desenvolvidos”;
- as caranguejolas estavam deveras suculentas.
Sobre o penúltimo ponto, recordo-me agora de um episódio contado por Heródoto na sua História (ao qual cheguei através de Paul Feyerabend, in Adeus à Razão, trad. António Fidalgo, p. 56, Edições 70, 1991):
Quando Dário era rei da Pérsia, convocou os gregos que sucedia estarem presentes na sua corte e perguntou-lhes quanto queriam para comerem os cadáveres dos seus pais. Responderam-lhe que por nenhum dinheiro do mundo o fariam. Mais tarde, na presença dos gregos, e com o auxílio de um intérprete, para que pudessem entender o que era dito, perguntou a uns indianos, da tribo da chamada Callatiae, que na verdade comem os cadáveres dos seus pais, quanto queriam para os incendiar. Soltaram um grito de horror e proibiram-no de mencionar uma coisa tão horrível.
Este episódio serve para ilustrar a força do costume. O costume é o que é e o que é tem muita força. Às vezes pergunto-me se valerá a pena lutarmos contra o costume. Quando me faço esta questão, tenho o costume de pensar que é costume as pessoas morrerem. Este insuportável costume determina praticamente tudo o que possamos pensar sobre a vida. Lembro-me que ao final da noite, depois de termos elogiado bastante o talento de Ricardo Araújo Pereira para a representação – um actor cuja maior vantagem é não ser actor –, ter vindo à baila o costume de certas pessoas para falarem de assuntos risíveis com a maior das seriedades.
A este costume junta-se aquela ênfase que nos faz acreditar estarem as pessoas absolutamente convencidas da importância extrema, fulcral, imprescindível das suas declarações. Trata-se de um tique facilmente detectável em indivíduos tão dissemelhantes como o Daniel Oliveira ou o Ângelo Correia. São indivíduos que falam como se o mundo tivesse acontecido apenas para os ouvir. Vivem os temas com um entusiasmo, com uma paixão, que não pode sequer deixar de impressionar uma caranguejola recheada. Acho-lhes piada, gosto de os ouvir. Mas não esperem que os leve mais a sério do que ao meu amigo Mário durante uma patuscada regada como manda o costume.
Durante o jantar chegámos a várias conclusões sobre as quais não me deterei mais do que uma linha:
- o islamismo é mais democrático que o catolicismo;
- o maior problema de Portugal é não ter verdadeiramente problema algum;
- o tempo das hegemonias acabou (abro uma excepção à hegemonia dos excluídos);
- o facto dos europeus estarem em vias de extinção deve colocar-nos optimistas perante o futuro;
- na sua subserviência à razão, o pensamento científico ocidental foi sempre muito irracional nos modos de encarar os saberes dos povos ditos “menos desenvolvidos”;
- as caranguejolas estavam deveras suculentas.
Sobre o penúltimo ponto, recordo-me agora de um episódio contado por Heródoto na sua História (ao qual cheguei através de Paul Feyerabend, in Adeus à Razão, trad. António Fidalgo, p. 56, Edições 70, 1991):
Quando Dário era rei da Pérsia, convocou os gregos que sucedia estarem presentes na sua corte e perguntou-lhes quanto queriam para comerem os cadáveres dos seus pais. Responderam-lhe que por nenhum dinheiro do mundo o fariam. Mais tarde, na presença dos gregos, e com o auxílio de um intérprete, para que pudessem entender o que era dito, perguntou a uns indianos, da tribo da chamada Callatiae, que na verdade comem os cadáveres dos seus pais, quanto queriam para os incendiar. Soltaram um grito de horror e proibiram-no de mencionar uma coisa tão horrível.
Este episódio serve para ilustrar a força do costume. O costume é o que é e o que é tem muita força. Às vezes pergunto-me se valerá a pena lutarmos contra o costume. Quando me faço esta questão, tenho o costume de pensar que é costume as pessoas morrerem. Este insuportável costume determina praticamente tudo o que possamos pensar sobre a vida. Lembro-me que ao final da noite, depois de termos elogiado bastante o talento de Ricardo Araújo Pereira para a representação – um actor cuja maior vantagem é não ser actor –, ter vindo à baila o costume de certas pessoas para falarem de assuntos risíveis com a maior das seriedades.
A este costume junta-se aquela ênfase que nos faz acreditar estarem as pessoas absolutamente convencidas da importância extrema, fulcral, imprescindível das suas declarações. Trata-se de um tique facilmente detectável em indivíduos tão dissemelhantes como o Daniel Oliveira ou o Ângelo Correia. São indivíduos que falam como se o mundo tivesse acontecido apenas para os ouvir. Vivem os temas com um entusiasmo, com uma paixão, que não pode sequer deixar de impressionar uma caranguejola recheada. Acho-lhes piada, gosto de os ouvir. Mas não esperem que os leve mais a sério do que ao meu amigo Mário durante uma patuscada regada como manda o costume.
1 Comments:
sapateiras recheadas acompanhadas por muralhas? porra! estou cheia de inveja.
:)
Maria João
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