SINOS DE ALEGRIA
Passo sempre o Natal em família, reunião reforçada com o aparecimento dos mais pequenos. Bebemos, comemos, falamos, cantamos, abrimos presentes, jogamos uma cartada. Devo dizer que lá em casa nunca se come bacalhau nem peru pelo Natal. Este ano houve uma entrada de camarões fritos, seguidos de sapateiras e lombo de porco. Das sobremesas, além dos tradicionais fritos, há a destacar um pudim molotov, um pão-de-ló, o bolo de noz, a tarte de laranja, um semi-frio caseiro de frutos silvestres e a salada de frutas. Tudo regado com branco de Bucelas e tinto alentejano, ficando a aguardente de medronho e o moscatel de Setúbal reservados para o café. Após o jantar, os putos abrem os presentes. Depois calha a vez aos adultos. Este Natal o Noel foi generoso: duas garrafas de tinto alentejano, um livro de Ramon Llull, o último tomo dos Sigur Rós, um pijama com o pato Donald, uma caixinha de DVDs da série ‘Allo ‘Allo!, um aparelho em forma de aranha para enfiar na cabeça e pôr a vibrar (dizem que destressa), um agasalho, bombons, paz & sossego. Uma única razão me traz aqui a partilhar estas coisas com os leitores. Essa razão chama-se: tempos de crise. Para aí desde o último governo do “é só fazer as contas” que ando a ouvir falar em tempos de crise. Pessoalmente, confesso que nunca vivi tempo que não fosse de crise. Com o 11 de Setembro foi a crise de civilizações, com os escândalos Moderna e Casa Pia foi a crise de valores, agora é a crise económica, isto para não falar da eterna crise do futebol português, da crise na educação, etc. A única porra que ainda não foi atingida pela crise é mesmo a crise. Anseio por uma crise da crise. A verdade é que a crise está aí, está na cabeça das pessoas, está na ponta da língua dos fazedores de opinião e na ponta dos dedos dos escribas, está nesta tendência fadista portuguesa, está nos temores com que os poderosos manipulam os dominados, está nas grandes mentiras que têm servido para engordar os pobres milionários. Morreu Harold Pinter, o Nobel que, sentado numa cadeira de rodas, não prescindiu do tempo de antena que lhe foi concedido para pôr a crise em dia. Chamou mentirosos aos senhores da guerra e está visto que tinha toda a razão. É a esses senhores que devemos a crise, a essa cambada de aldrabões que, apoiados em CIAs, Mossades, MI5s e o caralho, brinca com a vida das populações como se estivesse a construir um presépio de soldadinhos de chumbo. A crise mora na Serra Leoa, na Etiópia, no Ruanda, no Burkina Faso, nesses países todos onde à custa da exploração de escravos e da usurpação de matérias primas nós erigimos a filha da puta da nossa crisesinha. Nesta época de reflexão, penso nos jovens gregos e nos jovens parisienses e noutros jovens que andam a atirar pedras à crise. Também nós podíamos atirar pedras à crise, não fôssemos um povo de brandos costumes. Pelo menos que atirássemos sapatos à crise. Sabem por que não o fazemos? Porque ainda não sentimos crise nenhuma, porque ainda podemos passar natais rigorosamente burgueses, como o meu, ou em redor de uma fogueira a assar sardinhas e febras ou debaixo de uma tenda servidos pelo Banco Alimentar. Porque a crise ainda não passou de uma mera palavra que serve para tudo. Porque ainda há crédito para árvores de Natal, presépios e presentes inúteis. As pedras? Continuarão apenas a servir para darmos cabo das solas dos nossos amansados e recheados sapatinhos.
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