20.6.06

Os professores e a culpa

Dois bons artigos sobre educação, ambos no Público, com opiniões divergentes acerca do desempenho da actual ministra da tutela. Um, pela pena inteligente de São José Almeida, intitula-se O Titanic (dia 17); o outro, de António Borges, leva um título menos metafórico: Educação, Professores e Avaliação (dia 18). No meio da discórdia, um consenso emana: há maus professores. São José Almeida é mais assertiva: «Também não há que negar que há maus professores, desleixados, que se estão nas tintas e que até ludibriam o Estado». Ao passo que Borges opta por um estilo mais técnico e, digamos assim, diplomático: «Há evidentemente muitos bons professores em Portugal; há também muitos outros que encaram o seu trabalho como uma rotina que tem de ser cumprida, sem qualquer preocupação com os resultados». O hard-core do debate, mais uma vez, parece ser o da culpa e o de uma putativa perseguição que Maria de Lurdes Rodrigues terá encetado contra a classe docente. Não sei se a ministra disse que a culpa era dos professores, ou de alguns professores, ou somente dos maus professores. O que sei é que a culpa também é dos professores. Dos maus e dos que, levados pelo instinto corporativista, teimam em nada fazer contra a permanência daqueles em lugares aos quais se agarram que nem sanguessugas. Um mau professor empregado não significa só um mau professor empregado. Um mau professor empregado significa a promoção do desmazelo em detrimento da qualidade. Um mau professor empregado significa um bom professor no desemprego. É preciso ter isto em conta. Em entrevista à Pública, Nuno Crato não se contém na excitação: «Se há culpas dos professores, essas também se devem ao Ministério. Por exemplo, se alguns professores não têm a melhor preparação científica isso deve-se ao Ministério da Educação que durante décadas se recusou a fazer aquilo que era evidentemente necessário, que era um exame de entrada na profissão». Pergunto: se um aluno chega a um 12.º ano sem saber ler (repito, sem saber ler), quem poderei considerar responsável por isso? Se um aluno chega a um 12.º ano sem saber a tabuada dos 5, de quem é a culpa? Eu acho que é do aluno, dos pais do aluno, dos professores do aluno, das escolas por onde esse aluno andou, e, em última instância, dos sucessivos sistemas que os ministérios foram impondo sem se darem ao trabalho de os fazerem cumprir. Mas antes de chegar ao ministério, a responsabilidade passa por muitas outras instâncias. Quando um cidadão não cumpre a lei, a culpa é da Assembleia da República? Quando um médico é negligente, a culpa é da Ordem? Em matéria de culpa tendo a ser cartesiano: é a coisa mais bem distribuída do mundo. Os bons professores, creio, sabem disso e, por isso, vivem desassombradamente a temática da culpa. Diria mesmo que os bons professores estão-se nas tintas para as larachas da ministra. O que não significa que os outros sejam necessariamente maus. Os bons professores, reza a história, nunca ligaram muito a ministérios que não o das aulas e do ensino dos seus alunos. Os bons professores querem alunos, querem boas escolas e boas condições de trabalho. Querem, e merecem, respeito, sendo que para tal começarão, desde logo, por darem-se ao respeito não embarcando em histerias colectivas nem corporativismos estéreis. Os bons professores, se bem percebo, não estão contra serem avaliados. Há muito que ambicionam essa avaliação. Apenas desejarão que ela seja criteriosa e, tanto quanto possível, arraste para fora da escola os maus professores. Porque é disso que se trata: limpar da escola os maus professores. Os bons professores querem encarregados de educação mais intervenientes e interessados na educação dos filhos. Querem mais organização, escolas mais autónomas, programas mais flexíveis. Os bons professores, nisso faço fé, não estão à espera que lhes reconheçam o estatuto que merecem, pois há muito sabem que o estatuto de um professor conquista-se diariamente no labor das escolas. Os bons professores têm sido, desde sempre, envenenados. O Estado, no qual se incluem os maus professores, nunca gostou dos bons professores. Mais democracia, menos democracia, a história dos bons professores sempre foi uma história de discriminação. Começa logo nos estágios profissionalizantes, na forma macabra como se avaliam competências em função do volume dos dossiers. Cabe aos bons professores terem consciência disso, procurando resistir, cada um à sua maneira, junto dos seus alunos, à tentação de se tornarem maus professores. Quem são os maus professores? Aqueles que, não assumindo também as suas responsabilidades, desmoralizam quando não são apaparicados, seja pelos ministros, seja pela opinião pública, seja por quem for.

12 Comments:

At 2:58 da tarde, Blogger sandra costa said...

Henrique, concordo com muitas das ideias que escreves neste texto mas também discordo muito de pequenas coisas aqui escritas ou subjacentes e que, para mim, o inquinam.

Não consigo compreender, só a título de exemplo, a tua conclusão final: «Quem são os maus professores? Aqueles que, não assumindo também as suas responsabilidades, desmoralizam quando não são apaparicados, seja pelos ministros, seja pela opinião pública, seja por quem for.» São só estes os maus professores para ti? E sendo estes (e tendo em conta todo o teor do texto) será que, para ti, respeito é igual a apaparico, logo desrespeito é igual a "não apaparicanço"?

Deixo apenas estas perguntas, pensando para mim, também em sinal de resistência.

 
At 3:24 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Os maus e os bons...
Os maus são os que resistem, os bons não levantam ondas.
Esta história parece-se estranhamente com a do Pudido Valente.
Meu caro Senhor, em todas as profissões há bom e mau. No mundo há o bom e o mau. Mas o pior é falar sem conhecer o terreno. Está na moda, que fazer?
Concordamos numa coisa, o texto da São José de Almeida é um bom texto.

 
At 4:15 da tarde, Anonymous Anónimo said...

c.m., desculpe lá mas eu acho que você não percebeu nada do que eu escrevi. Henrique Manuel Bento Fialho, professor profissionalizado.

 
At 4:25 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Sandra Costa, reservo as respostas para post próximo onde pretendo reflectir um pouco sobre o teu e-mail que ainda não esqueci. Tudo a seu tempo. No entanto, para não correr o risco de me acusarem de «negligência bloguista» desde já respondo a uma: é claro que os maus professores não soa só esses, mas são principalmente esses (os que precisam de ser apaparicados para se dedicarem à profissão e os que não assumem as suas responsabilidades). Irrita-me o discurso dos professor tristonho, do tadinho, do desmoralizado. Mas desmoralizado porquê? Para desmoralizar, prefiro esta sociedade em que todos precisam de estímulos para andarem motivados. Há lá melhor estímulo para um professor do que o direito a ensinar?

P.S.: inflelizmente, por falta de tempo, não vou poder continuar a responder aos comentários como desejaria. Fá-lo-ei nos intervalos do trabalho e das actualizações bloguistas.

 
At 4:28 da tarde, Anonymous Anónimo said...

c.m.:
esqueci-me disto: não há melhor maneira de não levanta rondas do que levantá-las sem consistência, ou seja, embarcando em tsunamis histéricos contraproducentes. Ouça-se a opinião pública sobre o assunto e veja-se como uma greve estupidamente marcada pode pôr em causa toda uma luta (independentemente da justiça da mesma).

 
At 7:39 da tarde, Blogger blimunda said...

boas intenções encheriam o inferno não fosse o caso deste ter sido abolido. não basta querer é preciso ser. e para ser é preciso crescer. por dentro. e nem é preciso saber muito para saber isto: quem não tem para si não tem para dar. num país em que a pobreza cultural salta pimbalhisticamente à nossa beira, em que mais vale um pássaro na mão que dois a voar, porque deveriam os professores de ser diferentes? são alguns santos? são? :) já a conversa do preto e do branco e do bom e do mau me parece redutora... como se as coisas fossem assim como aqui: bastasse escrevê-las para elas acontecerem, bastasse um gajo gostar de ser apaparicado para ser mau, ou bastasse não desmoralizar para ser bom. tenho para mim que cada um aguenta o que aguenta por ser aguentatício. ou não aguenta o que os outros aguentam por não ser aguentatício. tipo genes, topas: um gajo pergunta: que fazes? sou ferreiro. e o teu pai, que fazia? era ferreiro. e o teu avô, que fazia? era ferreiro. and so on. agora experimenta pôr isto assim: como vai a vida? vai indo. e a vida do teu pai, como ia? ia indo. e a vida do teu avô, como ia?ia indo. aguentatícios de genética forte. eu cá não sou nada aguentatícia. e esta merda dá-me volta à tripa. porque é tudo o mesmo. a educação. a saúde. a habitação. o emprego. a vidinha. que se vai levando sem grandes ondas nem grandes marés. e depois, volta não volta, para calar esta gente que até pode pensar dá-se-lhe com as grandes reformas, os grandes eduquês. uns estrebucham, outros picam-se, outros indignam-se, outros... no final do verão, depois das férias, voltará tudo ao mesmo. claro. porque não haveria de voltar. não se pode realmente aflorar a questão essencial: está tudo mal desde o princípio. desde o ovo. desde o ovo. e a gente aguentar faz parte. e não aguentar também. foi bonita a festa, pá...mas acabou antes de começar.

 
At 9:25 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Concordo com a Sandra. E pergunto-te: leste atentamente a proposta de regime legal? Percebeste que o direito a ensinar está de facto ameaçado? E não me refiro às condições de ingresso na carreira, progressão, avaliação. Não é a isso que me refiro. E não só o direito de ensinar está ameaçado, como o direito de aprender.De facto este teu texto parece-me (desculpa, mas é o que parece) puro sofisma e lugares-comuns.
Soledade

 
At 9:31 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Há 2500 anos que se anda a dizer que «o direito a ensinar está de facto ameaçado». Quanto ao que este texto te parece, Soledade, não tenho nada que desculpar. A tua opinião merece-me todo o respeito. Como outras: http://azimutes.blogspot.com/2006/06/ex-ce-len-te.html .

 
At 11:48 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Caro Henrique
Tenha-me, se faz o favor, em melhor consideração. Percebi o seu texto, uma daquelas coisas que ocorrem aos simples mortais.
Sabe perfeitamente que não havia outra hipótese para a paragem (senão eram os exames), a não ser que considere, acompanhado pela ministra, que tudo ainda devia estar em discussão quando, efectivamente, os despachos se sucedem.
Também sabe que os problemas são reais: avaliação pelos pais (que é, para todos os efeitos, submeter a avaliação a critérios de audiência, com os resultados que se conhecem!), reforma adiada, cotas de progressão, ausência de progressão em caso de doença pontual, machadada nas equiparações a bolseiro (que acabaram) e na formação, etc., etc. Que tal o relógio de ponto e - não ou - o capataz com o chicote?
Depois, ao contrário do que parece acontecer consigo, não gosto de ser bode expiatório, como, aliás, não aplaudo quando se trata de outros (e.g. magistrados ou militares). É fácil apontar o dedo. Mas, na história recente do nosso sistema de ensino, o problema têm sido em grande medida o dedo que aponta (agora em versão Sado-maso).
Já se perguntou porque é que a escola está a ruir em grande parte do ocidente? Será que é tudo culpa desses maus professores (que percentagem, já que estamos in tecnocracia?)
Sabe com certeza tudo isto.
Mas quando a nossa equipa ganha tudo é bom jogo. Por estas e outras somos a classe que somos (e o resto é esquerda caviar, não é?). Nem militares nem juízes, ganhando pouco ou perdendo, baixaram as costas como nós (mas é certo ser tudo gente da esquerda caviar). Eu avalio-me todos os dias e acredito que o Henrique também o faça, não é isso que está em causa. O que, parece-me, está em causa – e ao contrário do pregão -, não é simplesmente a avaliação de um corpo disfuncional (o que não é dizer que não há maus professores, mas simplesmente que não é essa a questão). Sabemos ambos que não é esse o caso, o corpo funciona - inclusive demasiado bem, dada a sua situação de jangada atirada pelas ondas das sucessivas reformas. E, infelizmente, vai continuar a funcionar depois desta investida (desta vez de feição tecnocrática e dada a ‘engenharias financeiras’ com etiqueta pedagógica). Até aqui víamo-nos sujeitos a reformas, agora, sem qualquer rebuço, somos sujeitados a jogos de optimização. Muito bonito, se a escola pudesse ser uma unidade fabril ou uma empresa, mas não é, nem é desejável que venha ser.
Sim, é este hoje, em minha humilde opinião, o grande problema e não a disfuncionalidade da escola, o eduquês de Cratos e companhia ou a falta, bastante generalizada, de ideologia de empresa (falta-nos, felizmente, essa outra coisa recente que dá pelo nome espiritual de esquerda Tatcher). É claro que qualquer ‘bom funcionário’, como a centopeia da história zen, executa a sua função irrepreensivelmente, desde que não lhe peçam para pensar no que faz. Afinal, ele não é pago para pensar. E quando a realidade lusa for a que hoje ocorre nos E.U.A. e em Inglaterra (os resultados, bem à vista, do desinvestimento na escola pública dos anos Reagan/Tatcher)? Vamos, nessa altura, fazer o quê, apelar com Cavaco à filantropia?

 
At 1:11 da manhã, Anonymous Anónimo said...

psssssst...
e os alunos, hein?
Humpf! Uma ministra (e outros que tais) que não se lembra do que é ser aluna! Humpf!!

 
At 8:34 da manhã, Anonymous Anónimo said...

c.m., além de não poder discutir consigo a maior parte desses tão estimulantes temas, porque não estou no terreno (leia-se que não sou magistrado, não sou militar, não tenho dedos em riste, nunca me perguntei acerca da queda do ensino no Ocidente (Jesus!), não sou da esquerda caviar nem da direita toca a aviar, à senhora Tatcher só lhe conheço anedotas, não vivo nos E.U.A. e em Inglaterra, etc), continuo a julgar que você passou e continuar a passar completamente ao lado do post. Repare que não é por si que não tenho consideração. Não conheço c.m., como posso ter-lhe consideração? E a consideração não é algo que se tenha por e a favor. Conquista-se. Nunca com comentários destes: «Meu caro Senhor, em todas as profissões há bom e mau. No mundo há o bom e o mau. Mas o pior é falar sem conhecer o terreno.» Fez-me logo lembrar o Louçã a dizer ao Portas que ele não podia discutir o aborto porque não tinha filhos. É assim tipo exigir a um cirurgião que já tenha sido operado para poder operar. Será possível ter consideração por um comentário desses? P.S.: os alunos são fixes, ser aluno é fixe, vivam os alunos. Aluno até ao fim, ai de mim!

 
At 9:09 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Não me parece que os professores queiram ou sempre tenham querido ser «apaparicados».Apenas respeita
dos.O que não vem acontecendo,como se sabe, por parte de quem manda.
O que passa pelo respeito de si mesmos.

 

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