Vasco Pulido Valente na 2:
Vasco Pulido Valente, numa entrevista que deu ontem à 2:, contou a história de um pobre e de uma vaca que era uma coisa em forma de assim: um funcionário do governo chegou ao pé de um pobre e deu-lhe uma vaca, sugerindo-lhe que a tratasse bem; deveria o pobre aproveitar-lhe o leite e estimá-la, fazendo fé que no futuro lhe trouxessem um boi que a pudesse cobrir; consequentemente, assim estimada, tratada e poupada, a vaca poderia vir a dar muitos bezerrinhos. Primeira moral da história: trabalha e poupa, se queres enriquecer. Aconteceu que o funcionário do governo pôs-se a andar e, logo que o viu pelas costas, o pobre matou a vaca e comeu-a. Segunda moral da história: assim que se apanha com alguma coisa, o pobre esbanja-a. Estas historietas são muito engraçadas, sobretudo quando proferidas por quem fala de barriga cheia. Num poema dedicado a Malthus, Hans Magnus Enzensberger colocou bem o problema: «O que sabemos da fome / vem da boca dos que estão saciados; grande saber não será.»
Lá em casa sempre se contou outra história: a de um rapaz, filho de pais alcoólicos, que aos 11 anos de idade teve que fazer-se à vida. Dormia num curral, aconchegado pelo calor das burras. Teve o primeiro par de sapatos oferecido pelo patrão, dono de uma tasca onde se retocava o bandulho à escória da vila. Casou cedo, com 18 anos mal feitos. Foi para a guerra do ultramar, convencido de que Portugal tinha inimigos. Chegou lá e viu gente a morrer de fome, mais pobre ainda do que ele alguma vez fora. Deixou por cá a mulher e a primeira de três filhos. No regresso, prometeu a si próprio esfolar-se para que os filhos «fossem alguém na vida». Naquele tempo, ser alguém na vida significava bom emprego. O primeiro dos três filhos fez-se juíza de direito; o segundo fez-se psicóloga; o terceiro fez-se professor. Missão cumprida? À excepção da primeira, bem instalada, ainda os outros se socorrem, de quando em vez, do que a família pode abonar. Todos para cima dos 30, apenas 1 dos três pode gabar-se da segurança e compensação no trabalho que permite uma certa emancipação financeira.
É que agora o funcionário do governo dá a vaca, mas leva para si a maior parte do leite que a vaca dá. A gente fica à espera que o boi chegue, mas ele não chega. E quando chega, tanto nós como a vaca estamos caquécticos. A vaca, estéril, bezerrinhos já não dará. Poupar? Só se for para pagar a luz, o gás, a água, as telecomunicações, a gasolina, os empréstimos, a segurança social, o IRS, o IVA… O resto dá para a comida, para a bebida, para uma muda de roupa por estação e cultura quase nenhuma. Poupar? E viver? Podemos viver? Será que se pode viver, foda-se?! Poupar? Só se for para morrer desossado, aquecido de novo pelo bafo das burras. Enfim… para que conste, o poema de Enzensberger supracitado, dedicado a Malthus e não a Vasco Pulido Valente, termina assim: «um intrépido cagarola, / um simulador que toda a vida se fez passar por saudável, / o grande folgazão entre os profetas da catástrofe.»
7 Comments:
boa história.
bem dito! sobretudo o finale.
Ah! Adorei!:)
E eu até costumo gostar do VPV. Mas às vezes não há mesmo paciência para histórias tolas. (Não vi a entrevista)
para que não haja equívocos: adorei o post, não a história tola.
ainda ontem à noite, à conversa com amigos, dois deles espanhóis, falávamos sobre a falácia do sistema e sobre a epidemia de mentiras que o sistema espalha para que prolifere o medo e para que as pessoas deixem de pensar no que é essencial na vida, para que as pessoas se mantenham caladas. nada posso acrescentar ao post que fizeste. muito bom.
No alvo, Henrique.
estes textos de Enzensberger, fantásticos diga-se, acentam como uma luva à esquerda portuguesa.
tens toda a razão loucomotiva
principalmente à esquerda
do caviar
mas há quem não o entenda
e me chame neo-realista
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