18.9.06

DIAS ÚTEIS


Ontem fiz adeus aos inimigos, cantei duas canções tristes e deixei incompleta uma natureza morta pintada a óleo. Desde que as lágrimas se me secaram num qualquer lugar do sangue, minha mãe diz que sou o culpado de toda a fragilidade dos dias. Partem-se-me ossos se passo a mão pelo cabelo, queimam-se-me pestanas antes do sono. Tenho para mim que andar sobre a fragilidade dos dias não me há-de trazer qualquer felicidade. Mas continuo, permaneço. Sento-me na sala, ligo a TV, estrelo o tecto do quarto das filhas. Conto sempre um conto à hora de dormir e isso sabe-me bem. Respiro fundo, sonho um mergulho para bem fundo dos dias. Não posso voltar a escrever coisas que outrora escrevi. Por exemplo, não posso voltar a escrever que «por pouco tempo fecham-se os olhos / na luz de uma vela». Ou que procurarei a paz «nos desvios airosos / da maturidade». Não posso voltar a escrever que «entre nós / no inverno / as pessoas andam de ombros encolhidos». Já só os mortos encolhem os ombros no Inverno, caminham entre nós na cidade, pedem esmola, cospem para o chão, coçam as feridas, lambem o sarro. A tristeza que nos invade não é apenas um ramo de amor vendido num embrulho de plástico, daqueles que se esquecem nas mesas dos cafés à hora de partir. «Por motivos talvez claros / o prazer é o que nos torna / os dias raros». Por que são tão raros os dias raros? Havia um programa na televisão e tu lembras-te. Havia aquela canção do Sérgio Godinho, aquela que depois saiu num disco sobre o dia de descanso do mundo. Um álbum positivo até nos vírus, nos vícios. Não te faz sentido? Que sentido te faz o sentido? Que sentido te faz a vida? Alguém dizia num livro de Beckett que «é impossível parar, impossível continuar, mas tenho de continuar, portanto vou continuar, sem ninguém, sem nada, só eu, só a minha voz». Ainda te tenho. Mas e quando deixar de te ter? O prazer já não manda aqui, já a nada disto podemos chamar prazer. Trata-se apenas de uma forma, só mais uma, como ligar a televisão e ver um filme, deixar a natureza morta inacabada, só mais uma forma, dizia, para enganar a dor. Como uma droga, um panfleto de heroína, um chuto. Para a veia com a palavra, no sangue. A correr como se fosse o medo que nos contamina e rouba o sono, a correr como se fosse um homem parado no meio da sua própria solidão. Dias úteis? Horas fúteis.

3 Comments:

At 2:07 da manhã, Blogger Fábio said...

Identifico-me tanto com estas palavras Henrique, que por qgora não lhes acrescento mais nenhumas, na certeza que voltarei a este post, para dizer maia qualquer cois.
Obrigado, e um abraço

 
At 11:42 da manhã, Blogger margarete said...

"a fragilidade dos dias" de ontem era tal que nem me permitiu dizer isto: este escrito* poderia ser transformado numa espécie de oração para os dias, sem culto.


abraço, Henrique
a saúdinha, sim :)


* entenda-se que não é um "post" é um "escrito"

 
At 11:43 da manhã, Blogger margarete said...

e é claro, o bem haja pelo Sérgio Godinho
(só é pena ser sportinguista)

 

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