4.10.05

Disfarçar o desespero

A propósito destes relatos, o Sérgio coloca algumas questões essenciais: é de agora, o problema? E se é, o que aconteceu, e o que se pode fazer para mudar? Não haverá uma relação entre a mediocridade do país onde vivemos e esta ignorância aterradora dos alunos do secundário? Simplifiquemos. Não sei se é de agora o problema e, confesso, não me interessa. O meu espírito é outro: o problema está detectado, procuremos resolvê-lo. Depois de resolvido apuremos então responsabilidades. No nosso país costuma ser ao contrário, eu sei. Quando há um problema, corre logo toda a gente no encalço de culpados. Resultado: o problema arrasta-se, os culpados ficam por aparecer, nada se resolve. Tentemos então resolver o problema. É o que procuro fazer todos os dias. Acontece que o maior problema não é facilmente resolúvel. Qual é esse problema? A indiferença, o alheamento, a pura e simples apatia e desinteresse de muitos alunos. Acerca desse problema eu penso muita coisa, mas muitas das coisas que eu penso não resolvem o problema. Por exemplo, essa indiferença propaga-se por contágio. Começa no seio familiar, não se resolve numa escola organizada segundo métodos retrógrados, adensa-se nos exemplos que a sociedade vai dando e aos alunos vão chegando por uma imprensa ávida de gente manipulável, influenciável, estúpida. Penso também que ao Estado dá muito jeito esta percentagem populacional que não vê um palmo à frente do nariz. É gente que facilmente se deixa absorver pelos mecanismos para os quais o Estado as talha: produzir para consumir. Ou seja, muitos destes miúdos confundem felicidade com dinheiro. O dinheiro é o Deus da religião Economia, o que, na cabeça destes miúdos tem o seguinte efeito: para ser feliz, tenho que consumir; para consumir, tenho que ganhar dinheiro; para ganhar dinheiro, tenho que produzir. Logo, pensam eles, tudo o que é conhecimento, cultura geral, não importa. O que importa é saber ganhar dinheiro. O problema, hoje em dia, é que, como sabemos, as coisas já não são bem assim. Uma sociedade inculta é, para todos os efeitos, uma sociedade hipotecada. Não se esqueçam disto: estamos a formar, na generalidade, gente para os serviços. Gente para turista ver e pouco mais. Os outros, se forem espertos, se puderem, se tiverem encarregados de educação conscientes, que "fujam" quanto antes para o estrangeiro. Dificilmente se safarão por cá. Como já disse por aqui, o nosso Estado desconfia dos alunos excelentes. É por isso que os trata tão mal. Ao contrário, premeia os maus alunos, os desinteressados, pois são esses o futuro do país. É esta a relação possível entre a mediocridade de uma sociedade apimbalhada e um sistema de ensino pouco mais que retórico. O que se pode fazer para mudar? Resistir. Indo, dentro do sistema, minando o próprio sistema. Abrindo, tanto quanto possível, o maior número de olhos… e esperar que de entre vinte numa turma, haja pelo menos um ou dois que passe a questionar mais aquilo que vê à sua volta. Atenção: se os relatos que aqui tenho vindo a referir são apenas alguns dos mais tragicómicos, outros há que são pura e simplesmente impraticáveis. Tal é a desgraça. Mas nem tudo são espinhos. Hoje, por exemplo, ao olhar os livros que eu tinha em cima da minha secretária, uma aluna disse-me que já tinha lido a Metamorfose de Kafka e que andava agora a ler Hermann Hesse. Isto, se por si só não diz nada, já nos permite acalentar alguma esperança. Ou, pelo menos, disfarçar o nosso desespero.

9 Comments:

At 9:57 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Por vezes é desesperante, os miúdos sabem muito pouco, por vezes o que não sabem põe em risco até a sua vida.
Ainda esta semana num grupo de 4 miúdos (entre os 12 e 14 anos) nenhum deles sabia, como é que uma mulher sabe que está grávida (havia no grupo uma menina, provavelmente já em idade fértil) substitui a explicação da adição de fracções por algo que me pareceu mais útil e dei uma aula de educação sexual. Mas acho que o caminho é o que apontas, resistir, insistir, e esperar que algum deles ouça.

Aurora.

 
At 12:52 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Sera que existem diferencas conforme as regioes?
Tenho um amigo professor numa secundaria do Pinhal Novo e por la as coisas sao diferentes.
Como somos musicos, iniciamos um projecto (sem remuneracao) de iniciacao musical e guitarra, e posso garantir-vos que fiquei positivamente espantado com os conhecimentos gerais, com os grupos e actividades que desenvolviam.
O meu amigo disse-me, depois, que, de uma forma geral, eram todos assim.
Que estranho.
nelson

 
At 1:01 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Desculpem, mesmo aqui em Almada, onde vivo, a minha filha, sobrinhos e respectivos amigos (muitos) com quem falo, noto um interesse bastante grande por musica, poesia, mais por causa do hip-hop mas e um comeco, fotografia, fazem blogs com fotografias, algumas bastante criativas com textos razoaveis.
Mas tambem conheco o outro lado, o da ignorancia quase total, basta ir ate uma escola da Trafaria.
Nao percebo.
nelson

 
At 2:21 da manhã, Blogger MJLF said...

O António Barreto afirmou que o nosso pais em 30 anos tinha deixado de ser uma sociedade rural tornando-se o Portugal audiovisial. Foi uma passagem directa num periodo de tempo muito curto, as consequencias estão à vista. A sorte é ainda surgirem as excepções à regra, os miudos que ainda não foram engolidos pela indiferença e passividade da população em geral. Acho que o mesmo se poderá dizer dos adultos, são poucos os que se esforçam por estar vivos.

 
At 4:47 da tarde, Anonymous Anónimo said...

muito bem h.m.mas o dinheiro e extremamente importante.porque e que o 3 mundo esta pessimo?por falta de dinheiro.normalmente os pobres sao muito mais incultos que os ricos prtanto nao e bem por ai...o problema esta em nao saber gasta lo(e atencao,estou constantemente a perder dinheiro dou o com facilidade e nao planeio vir a ganhar mais que a media por razoes meramente pessoais claro esta).o resto tambem esta muito bem!se te fez confusao a parte do dinheiro por favor pede-me(ah como eu adoro esta expressao por favor pede me por favor pede me...)esclarecimentos.raramente me alongo por varias razoes intimas e por serem demasido longos os teus textos talvez tivesse sido melhor pros comentadores se tivesses feito uns cinco posts deste indicando claro que formam um so passe o pleonasmo(aminha intencao nao e de todo ser arrogante contigo como alias nunca foi mas apenas dar-te a minha perpectiva ate porque tenho a impressao que tens mais e melhores comen. nos posts curtos portanto e apenas um conselho de simpatia sem paternalismo ja que para segui lo nao tens que alterar os conteudos como e obvio).o nelson fez bastante bem em atentar nesses nichos mas a trafaria tem cicunstancias dificilimas(eu morava la no bairro clndestino em frente a secundaria)que transcendem quaquer abordagem comum parece-me.mas tem melhorado muito.clap clap clap de novo maria.essa frase final tocou me especialmente.
p.s:neste verao numa das visitas ao supracitado bairro vi um conhecido de infancia(dos pouquissimos que se aproximam da amizade embora eu nunca tenha tido amigos va se la saber porque,intrigante nao?...;-) )sozinho a olhar para o mar chamado tejo aproximei me fiz-lhe as minhas habituais perguntas observacoes piadas insipidas ate que meio comovido plo olhar pla historia(que nao foi refernciada no nosso dialogo mas da qual me vieram varias reminiscencias que pouco ou nada importam pra aqui exccepto talvez a de que ele era excelente aluno e no 8 ano deixou a escola por razoes que desconheco...)e pla degradacao fisica dele ainda e adolescente e ja tem a pele da cara muito desgastada muitos dentes podres problemas muito graves nas costas etc perguntei lhe pla avo que estava no hospital com cirrose a morrer ele repondeu me depois de um longo silencio(habito muito dele)com um encolher de ombros(note se que ele e extraordinariamente generoso altruista honesto etc do melhor que ja conheci embora tenha defeitos graves:uma certa ingenuidade:e capaz de ser muito xenofobo porque foi essa a educacao que lhe deram e pro animalsco:e capaz de desancar alguem por pouquissimo embora ature idiotas como eu ate a nausea nao por me recear fisicamente embora eu seja ainda consideravelmente mais alto que ele ja que mesmo que a diferenca no capitulo marcial fosse abissal ele nao hesitaria em desfigurarme com um ferro ou assim mais cedo ou mais tarde) e num tom desprezivo que ele nem sequer sabia dele proprio...(note se que a avo embora tenha dado uma educacao cruel aos filhos,a comum nas camadas baixas tentava dar todo o pouco que tinha aos netos...mas eu nao conhecia a relacao dele com a avo na intimidade nem qual o mobil da avo pra lhe dar tanto por isso talvez a reaccao dele tenha sido justa,ate espancar a mae ate a morte pode ser justo.)fiz lhe mais uma pergunta qualquer a qual ele encolheu os ombros notei que um brilho doentio(o que me tinha comovido) lhe crescia no olhar e despedi me preocupado.
pronto ja tive o meu acesso de lamechice(acho que isto nao e lamechas mas parece me que a maioria achara o contrario.este derrama vai me deixar livre estacoes e estacoes.ah como e bom ser o anonimo comentador de um blog pra se poderem fazer confissoes e elogios sem temores.bem sei que isto pouco ou nada tem a ver com o post mas a lembranca estava a pungir e nao resisti...talvez a maria tenha apreciado nao sei dadas as suas actividades.

 
At 4:54 da tarde, Anonymous Anónimo said...

acrescentar "bastante" a seguir a "alongo". bem me queria parecer que faltava qualquer coisa:e e engracado pois ja tenho escrito comen. de uma linha em que tudo me parece estar a mais(impressao que talvez amanha o acima me de)...ironias ironias...

 
At 6:04 da tarde, Anonymous Anónimo said...

não acho que seja o $ a principal causa da separação, mas a minha opinião é suspeita, já que nasci numa familia com 6 filhos onde o dito nunca abundou, claro está que aos 7 anos eu andava de sapatos rotos comia pão com pão e no entanto devorava tudo o que tivesse letras.
O que faz a diferença afinal? Acho que é mais o despertar e acarinhar a curiosidade normal das crianças. e depois deixa-las crescer

Aurora

 
At 2:18 da tarde, Anonymous Anónimo said...

quando digo muito bem e literal:gostei mesmo muito de tudo excepto do que referi embora eu nao discorde exactamente...apenas me parece que o dinheiro sai subvalorizado e a influencia que ele tem na ignorancia o contrario.o exemplo da aurora e espantoso e o conselho e fulcral mas ainda mais importante seria educar os adultos.como?telenovelas mais bem escritas por exemplo...

 
At 3:24 da tarde, Anonymous Anónimo said...

ah...e verdade a avo do meu conhecido morreu logo e a indiferenca manteve se;-)
quanto a parte final do teu texto tenho a dizer que o coisinho ate conhece palavras como hierofante e pedantesco...ainda que tal sapiencia saliente minha hiperborea superioridade a minha humilima simplicidade impossibilita que me inculque de ser o unico a conhecer tais termos...;-)

 

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