Normalmente lavo as mãos antes e depois de escrever mesmo que sejam coisas porcas # 5
Em casa os meus revolucionários indomados
dão-me a ideia que a minha vida não passará
Adraar Bous
Resta-nos Alexandre O’Neill, porventura a voz que mais ecoa nesta poesia. Coincidência ou talvez não, como O’Neill tem o Nuno composto a vida em agências de publicidade. Por terminar terá mesmo ficado um curso de Marketing e Publicidade da Escola Superior de Comunicação Social de Benfica. Não obstante, o audaz poeta alfacinha terá sido fonte de outros sucos: esse horizonte dúbio onde o realismo toca o surrealismo, o olhar de lince sobre o quotidiano, o tal «estofo lírico-épico-dramático que está por debaixo da banalidade dos dias» (António Alçada Baptista), a ironia melancólica, a urbanidade, uma espécie de sociologia poética da contemporaneidade, e, porque isto anda tudo ligado, uma forma muito peculiar de ler Camões. Veja-se como neste Vai Para Casa a paisagem vivenciada dá azo a uma composição onde se torna impossível diferenciar tais elementos, por tão incorporados numa só voz eles se apresentarem: «Cais do Sodré de manhã, ela diz / para um homem: vai para casa, tomar banho, / desmaquilhar-te. O homem pergunta e ela responde sim, / que se notava até demais. // O homem encosta-se à caixa multibanco e dividem. // Ela também não quer mais, o homem pode beber o resto da lata, / matar o cigarro. // A beata sai do vento dos dedos como um berlinde, faz um fogo / no eléctrico parajado, o homem diz: viste como ela me levou /para o quarto, pela mão? // Vi, vi também 11 garrafas amarrotadas no meu caixote do lixo, / dois filtros tesos no cinzeiro, tu a entrares pela mão / no quarto dela. // As árvores do largo deixaram as toalhas na relva quente / e pincharam no rio, o homem disse: não viste, / mas ela sentou-me na sua cadeira mais rente, / disse para eu estar quieto que agora me ia pintar / e abriu um coração verde com um espelho em cima, / não viste. // Vi um riso. Vi terra amanhada por unhas manicuradas. / Não vi estas lágrimas. // A marreta de uns olhosfechados dirigiu a tangueta da clássica / dos meninos verdes – o coro das orcas, o tacto dos cegos / - o homem disse: que neve pura me limpe. // No pontão as árvores alouravam. / Um camarário de vassoura e atrelado susteu seu escarro, / passou a mão pela febre, puxou do baton.» (In Soluções do problema anterior, pp. 54-55) Se citamos o poema na íntegra, é porque consideramos ser um dos momentos mais altos desta poesia com extensões várias nas publicações mais alternativas da “especialidade”. (Cfr. a título de exemplo revistas Abril em Maio, n.º 0, Bíblia, n.º 12, V-Ludo, n.º 4 e 6)
dão-me a ideia que a minha vida não passará
Adraar Bous
Resta-nos Alexandre O’Neill, porventura a voz que mais ecoa nesta poesia. Coincidência ou talvez não, como O’Neill tem o Nuno composto a vida em agências de publicidade. Por terminar terá mesmo ficado um curso de Marketing e Publicidade da Escola Superior de Comunicação Social de Benfica. Não obstante, o audaz poeta alfacinha terá sido fonte de outros sucos: esse horizonte dúbio onde o realismo toca o surrealismo, o olhar de lince sobre o quotidiano, o tal «estofo lírico-épico-dramático que está por debaixo da banalidade dos dias» (António Alçada Baptista), a ironia melancólica, a urbanidade, uma espécie de sociologia poética da contemporaneidade, e, porque isto anda tudo ligado, uma forma muito peculiar de ler Camões. Veja-se como neste Vai Para Casa a paisagem vivenciada dá azo a uma composição onde se torna impossível diferenciar tais elementos, por tão incorporados numa só voz eles se apresentarem: «Cais do Sodré de manhã, ela diz / para um homem: vai para casa, tomar banho, / desmaquilhar-te. O homem pergunta e ela responde sim, / que se notava até demais. // O homem encosta-se à caixa multibanco e dividem. // Ela também não quer mais, o homem pode beber o resto da lata, / matar o cigarro. // A beata sai do vento dos dedos como um berlinde, faz um fogo / no eléctrico parajado, o homem diz: viste como ela me levou /para o quarto, pela mão? // Vi, vi também 11 garrafas amarrotadas no meu caixote do lixo, / dois filtros tesos no cinzeiro, tu a entrares pela mão / no quarto dela. // As árvores do largo deixaram as toalhas na relva quente / e pincharam no rio, o homem disse: não viste, / mas ela sentou-me na sua cadeira mais rente, / disse para eu estar quieto que agora me ia pintar / e abriu um coração verde com um espelho em cima, / não viste. // Vi um riso. Vi terra amanhada por unhas manicuradas. / Não vi estas lágrimas. // A marreta de uns olhosfechados dirigiu a tangueta da clássica / dos meninos verdes – o coro das orcas, o tacto dos cegos / - o homem disse: que neve pura me limpe. // No pontão as árvores alouravam. / Um camarário de vassoura e atrelado susteu seu escarro, / passou a mão pela febre, puxou do baton.» (In Soluções do problema anterior, pp. 54-55) Se citamos o poema na íntegra, é porque consideramos ser um dos momentos mais altos desta poesia com extensões várias nas publicações mais alternativas da “especialidade”. (Cfr. a título de exemplo revistas Abril em Maio, n.º 0, Bíblia, n.º 12, V-Ludo, n.º 4 e 6)
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