29.11.05

Fragmento #22 - Anjo leão, murmúrios de cordeiro

Na sequência do cruzamento com um anjo leão em tempo quente, fiquei atordoada, insegura e envergonhada por quase não conseguir cantar na sua presença; foi então que consultei um amigo sábio, queria saber a sua opinião sobre os acontecimentos. O migo querido avisou-me que a insegurança nos deixa como um pote de mel, ficamos pegajosos e doces, com vontade de comer colheradas ao invés de irmos à cata de flores pelos campos e jardins; de seguida enumerou-me uma enorme lista de flores, rematando com seguinte enigma: “temos tantas flores que os outros nos deixam”. O migo é mesmo maluco, não diz coisa com coisa, confessou-me que também nunca conseguiu caçar um anjo e acha que isso se deve fazer com redes de borboletas. No entanto, em termos práticos concordou comigo em relação ao bolo de laranja, afinal, o suborno é menos romântico e mais seguro.
E assim foi, telefonei ao anjo leão e ele marcou um ensaio ao meio-dia, no pico do calor, deve ter gostado de me ver a suar. Quando ia a descer a sua rua, olhando os números das portas dos prédios, deparei-me com este ser em estado contemplativo, sentado num pequeno muro junto a um espaço verde, com as partituras na mão.Ele já me tinha vista de certeza há algum tempo e faltava ainda um bocado para a sua porta. O anjo foi delicado, simpático, ensaiámos como deve de ser, ele tocou bem, eu estava mais à vontade, tinha estudado a peça; deu-me sugestões e elogiou-me dizendo que “começava a existir momentos com uma certa musicalidade”. Eu estava preocupada com as peças que ele iria tocar com o coro, visto que apenas no dia do casamento se faria o ensaio. O anjo dourado com rugir de leão parecia um cordeirinho, muito memé, dizia que não haveria problema, recomendou apenas que se fizesse o Gloria de Vivaldi mais lento. Eu só lhe ofereci o bolo de laranja no fim – tive o bom pecado sempre guardado secretamente na mala, achei que não lhe podia oferecer nada de bandeja, com aquele feitio – entretanto, começámos a conversar e como já previra, estava perante um católico dogmático. Expliquei-lhe que tenho uma relação com o transcendente, que não é uma figura antropomórfica com barbas e que nunca encontrei conforto no ritual. E que Kierkegaard me fez ver a diferença entre a fé e a crença, que a vida espiritual é uma forma de liberdade, enquanto que a crença é uma prisão; e de como a fé se tornou algo longínquo para mim e foi transposto para a actividade artística. O anjo começou a sacar do latim, dizendo que antes de mais nada considerava-se cristão, depois então era pianista, professor etc... Eu disse-lhe que o Álvaro Cunhal também, que quando lhe perguntaram pelo Nobel do Saramago, se estava contente com a atribuição do prémio a um escritor comunista português, ele respondeu: - Escritor comunista? Perdão, um comunista escritor. Expliquei-lhe as semelhanças entre as ideologias políticas e a religião, ele começou a olhar-me desconfiado, dizendo que não percebia quando falava a sério ou a brincar. Respondi-lhe que aprendi muito com Kierkegaard em relação ao humor e à ironia, e que falo a sério a brincar, ou brinco com o sério. Depois passámos ao Evangelho de S. João, o meu favorito, falámos do sentido literal e simbólico que se pode ter na leitura dos textos. Ele falou-me em anjos, eu contei-lhe que os anjos actualmente são OVNIS, a mitologia contemporânea está muito mais virada para o imaginário científico. Ele estava cada vez mais desconfiado e tentou convencer-me que cristo, o deus homem, mudou a visão do que era um rei, um chefe político. Eu disse-lhe que também admirava Ghandi, o cristo indiano. E que gostava mais do deus homem, do deus filho, porque não é cruel como o deus pai que é a lei, castiga e é cruel. O deus filho é bonzinho... ele dizia que deus é só um, eu respondi-lhe que a natureza tem tudo isso. Por fim, ofereci-lhe o pedaço de bolo e ele ficou radiante, foi logo guardar num pratinho. Fiquei radiante com este segundo encontro, achei que o anjo alimentado com fina doçaria era já um anjo caído, mesmo que depois tivesse de pagar um arrendamento ao divino.

Maria João

1 Comments:

At 1:12 da tarde, Blogger hmbf said...

magnífico

 

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