"VÍCIO DE MARFIM", de António Sancho
Não é todos os dias que se pode saudar o aparecimento de uma nova editora (Babélia Editora) quando se trata, como é o caso, do lançamento simultâneo de cinco livros de três poetas de que espero dar conta neste e em posts posteriores. António Sancho estreia-se com três livros (na verdade é de uma estreia que se trata), um dos quais é este "Vício de marfim": "Existe vida após o nascimento", pergunta Sancho logo a abrir, e a resposta, que em livro é tripla, surge com um "eu" que se conta por exemplo assim:
Eu tenho um corpo fermentando no amor que ponho a dar.
Um súbito e vagaroso leite, uma alavanca de suor.
Preocupa-me o medo, a única função. Os passos
nunca dados nas rútilas que são flores por destruir.
É preciso imaginar espelhos ainda inteiros. E parti-los,
esquecê-los muito, parti-los muito
com os olhos abismados perto, tão em cima.
Descompreender o mundo, ou seja, seduzir
por dentro do imparável sono como a água
nasce.
Os cavalos doces desistem muitas vezes.
Mas transformam os rios quando as cidades chegam
dispostas a tudo: abrindo as imagens nas paredes
sábias: desocultando Deus, homem
eternamente grato.
Eu brinco maduramente por cima da pele.
Brinco e ressuscito e tudo quanto brinco
é dilatação e inocência. Quem eu fui
ri e eu oiço a sua circunstância: dura impregnada
uma voz no sangue. Por ela nego e chamo poucamente
quem se inflama. Eu sou humano e oiço com as mãos.
Sem melancolia, porque o sublime é isto.
Há, parece-me evidente, ecos de autor que muita semente atirou a chão de poesia portuguesa, Herberto Helder, presente no aparato metafórico que percorre o poema de ponta a ponta (até um final algo frouxo, diga-se, em desarmonia com o resto do poema), no tom luxuriante com que o corpo se revela no poema (o "corpo fermentando", a "alavanca de suor"), no jeito (algo) barroco como a primeira pessoa desarma o mundo com sua arma de brincar ("Eu brinco", "brinco e ressuscito", "tudo quanto brinco"): poesia, repetida, desdobrada, de mítica criação que a muitos soa afastada do mundo mais perto em que alguém vive e é também poeta ainda que não saiba: nós, eu e o leitor, embora António Sancho não se fique por aqui. E arrisca outros registos, correndo o risco de perder (Mário de Sá-Carneiro, também ele presente, reconheceria o título e outros "vícios" deste livro) Em outro post talvez, havendo tempo e jeito.
Rui Costa
Eu tenho um corpo fermentando no amor que ponho a dar.
Um súbito e vagaroso leite, uma alavanca de suor.
Preocupa-me o medo, a única função. Os passos
nunca dados nas rútilas que são flores por destruir.
É preciso imaginar espelhos ainda inteiros. E parti-los,
esquecê-los muito, parti-los muito
com os olhos abismados perto, tão em cima.
Descompreender o mundo, ou seja, seduzir
por dentro do imparável sono como a água
nasce.
Os cavalos doces desistem muitas vezes.
Mas transformam os rios quando as cidades chegam
dispostas a tudo: abrindo as imagens nas paredes
sábias: desocultando Deus, homem
eternamente grato.
Eu brinco maduramente por cima da pele.
Brinco e ressuscito e tudo quanto brinco
é dilatação e inocência. Quem eu fui
ri e eu oiço a sua circunstância: dura impregnada
uma voz no sangue. Por ela nego e chamo poucamente
quem se inflama. Eu sou humano e oiço com as mãos.
Sem melancolia, porque o sublime é isto.
Há, parece-me evidente, ecos de autor que muita semente atirou a chão de poesia portuguesa, Herberto Helder, presente no aparato metafórico que percorre o poema de ponta a ponta (até um final algo frouxo, diga-se, em desarmonia com o resto do poema), no tom luxuriante com que o corpo se revela no poema (o "corpo fermentando", a "alavanca de suor"), no jeito (algo) barroco como a primeira pessoa desarma o mundo com sua arma de brincar ("Eu brinco", "brinco e ressuscito", "tudo quanto brinco"): poesia, repetida, desdobrada, de mítica criação que a muitos soa afastada do mundo mais perto em que alguém vive e é também poeta ainda que não saiba: nós, eu e o leitor, embora António Sancho não se fique por aqui. E arrisca outros registos, correndo o risco de perder (Mário de Sá-Carneiro, também ele presente, reconheceria o título e outros "vícios" deste livro) Em outro post talvez, havendo tempo e jeito.
Rui Costa
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