7.11.05

A propósito de Paris


Pela enésima vez, La Haine. Em tempos idos, alimentei grandes teorias acerca do ódio. Li muita coisa sobre o tema e pensei até em meter-me a braços com uma tese sobre o assunto. Sou porém daqueles a quem as teses não dão tesão. Fiquei-me pelas leituras e pelo esforço de uma organização interna dos conceitos, uma espécie de consciência interna do ódio. Da «tragédia cósmica» de Empédocles, onde o Ódio/Discórdia (em maiúsculas) aparece ao lado do Amor como uma das forças orientadoras do mundo, às sábias questões levantadas por São Tomás no Tratado das paixões da alma, indo por aí adiante até à estimulante retórica das paixões enunciada por Michel Meyer no magnífico O Filósofo e as Paixões, foi alguma a literatura que procurei ler sobre o ódio. Infelizmente, o ódio apareceu-me muitas vezes tratado como resultado da ausência de amor. Alguns autores temeram conferir ao ódio uma força, senão interdependente do amor, pelo menos em estreita relação com o seu oposto natural. Uma vez, um meu aluno disse-me, depois de visionar O Ódio (1995), que só se odeia aquilo que de certa forma se ama, aquilo que não nos é indiferente e, por isso, nos causa uma dor que, num ímpeto, se transforma num desejo de querer mal. Nunca percebi onde é que ele foi buscar tal ideia no filme de Kassovitz. Este filme coloca uma série de questões muito pertinentes sobre intolerância, discriminação, repressão, etc. No fundo, tudo se resume à incapacidade que as sociedades têm sentido, ao longo dos tempos, em conviver com a diferença e a liberdade de cada um dos seus indivíduos. Os sociólogos falarão em socialização, a psicossociologia falará em preconceitos e estereótipos, outros referir-se-ão a esse estribilho absoluto que dá pelo nome de integração. Trata-se apenas de não saber conviver, ou de não querer conviver, com uma das características humanas essenciais: o ódio. Russell colocou bem o problema, porém foi demasiado optimista ao considerar ser possível eliminar o ódio da vida humana. Chega a ser contraditório afirmá-lo, já que para isso teríamos, então, de negar a nossa própria humanidade. Dir-me-ão: é precisamente isso o que temos feito ao longo dos tempos. Tem resultado? Não. A solução só pode estar em canalizar esta força destrutiva para algo construtivo. A poesia, por exemplo, como outras artes, podem ser óptimos vínculos de canalização das forças humanas mais destrutivas. Temos alguns exemplos que vêm, desde logo, à cabeça: A Cena do Ódio, de José de Almada-Negreiros, é o mais exemplar de todos. Só quem ama muito o seu país, podia odiá-lo daquela maneira. Outro exemplo que nos é familiar chega-nos do Brasil, pela pena de Mário de Andrade: «Desque me fiz poeta e fui trezentos, eu amei / Todos os homens, odiei a guerra, salvei a paz!» E que dizer desta estrofe de J. W. Goethe: «É importante, por fim, / Que o poeta tenha ódio, / Que como o belo não cante / O que é feio e causa tédio.» Deixem-me que vos recorde, ainda, a bela Cantiga do Ódio, de Carlos de Oliveira, ou estes versos seminais de Walt Whitman: «Partaker of influx and efflux I, extoller of hate and conciliation, / Extoller of amies and those that sleep in each others’ arms.» Alguns poetas, muito mais dados ao amor que ao ódio, têm perdido demasiado tempo a cantar a primavera dos seus próprios corações. Têm esquecido, pessoas exemplares que são, gente de uma humanidade incomensurável, os blocos de gelo que também lhes crescem no sangue. Têm omitido em demasia a azia com que, por certo, também vivem parte das suas vidas. Talvez por não verterem nos seus versos o gelo das suas almas, se permitam viver passivamente num mundo odioso. Amar, todos sabemos. É tempo de aprender a odiar o que não nos merece amor. Kassovitz cantou o ódio no seu filme, naquele que será, para sempre, o seu filme. A última cena termina com o rosto de Baudelaire pintado numa parede de fundo. É do poeta francês o melhor poema sobre o ódio que li até hoje:

O TONEL DO ÓDIO

O Ódio é o tonel das brancas danaídes;
A Vingança febril, de braços rubros, fortes,
Tenta precipitar nessas trevas vazias
Grandes baldes com o sangue e as lágrimas dos mortos,

Em segredo o Diabo fura esses abismos
Por onde verteriam mil suores e esforços
Se o Ódio, ele mesmo, reanimasse as vítimas
E para as espremer ressuscitasse os corpos.

O Ódio é um bêbado numa taberna,
Que quanto mais bebeu mais sede ainda vai tendo,
Vendo-a multiplicar-se, qual hidra de Lerna.

- Mas, se ébrio feliz conhece quem o vence,
A sorte lamentável o Ódio está votado:
A de nunca poder adormecer saciado.

In As Flores do Mal, Assírio & Alvim, trad. Fernando Pinto do Amaral.
9 de Março de 2005.

5 Comments:

At 11:53 da tarde, Anonymous Anónimo said...

eu até os compreendo...mas penso que nada justifica violencia gratuíta.

Aurora

 
At 1:11 da tarde, Blogger hmbf said...

Se a violência, mesmo gratuita, nos merece compreensão, então nem precisa de ser justificada. Eu compreendo aquela violência, acho que se justifica, embora a julgue inaceitável. Principalmente inaceitável por poder ser evitada. Mas décadas, talvez séculos, de incúria não o evitaram nem vão evitar se no futuro continuarmos a olhar para o outro como apenas e só um outro. É preciso aprender a odiar o que não nos merece amor.

 
At 9:54 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Compreendo a frustração de quem cresce de cabeça vergada a olhar para cima e a desejar o que não nunca alcança. Também entendo o quão desesperante deve ser alguém sentir-se apatriado, desenraizado sempre preterido. Não me atrevo a dizer que sei o que é ser vítima de racismo nunca passei por aí. Mas já calquei outros trilhos.
Continuo no entanto convicta que nada disto justifica que se ateie fogo a um autocarro cheio de gente. É inaceitável. Sei lá, organizem manifestações, pintem grafitis no Louvre, mostrem o traseiro ao presidente da república, invadam os centros de emprego em bloco, todos juntos à hora marcada.
O que me faz espécie é ouvir aqueles testemunhos de jovens ainda mal começaram a viver e já baixaram os braços, renderam-se a desesperança e ao ódio cego.


Aurora

PS: concordo inteiranente com o que dizes no ultimo post: a realidade escapa-nos, é filtrada e manipulada pelos média.

 
At 9:54 da manhã, Anonymous Anónimo said...

«organizem manifestações, pintem grafitis no Louvre, mostrem o traseiro ao presidente da república, invadam os centros de emprego» - digamos que esse tem sido o circo de todos os dia de há muitos anos a esta parte!

Aurora, não sejamos ingébuos. Aqui há uns tempos eu disse que queria bombas. Afinal, para que servem as bombas? Não é para fazer explodir coisas. Nada muda se ninguém for afecvtado pela acção. As revoltas fazem-se de violência. A violência é um dos motores da mudança. Mas atenção, num post acima já disse o que me parece (repito parece, porque não posso saber) estar por detrás dos desacatos.

Quanto a este post, o essencial é isto: é preciso aprender a odiar o que não nos merece amor. Mais acima, alguém disse que isto era radical. Outro alguém disse que o amor é que é importante. Repare-se: temos nas costas 2000 anos de evangelização do amor! Deu no que deu. O amor, por si só, não basta. O ódio é uma forma de amor, enquanto não o entendermos assim não vamos a lado nenhum. Por exemplo: odiar toda e qualquer forma de violência (porque a violência não nos merece amor) é amar a paz!

É preciso pregar o ódio. No amor, se ele estiver sozinho, já ninguém acredita.

 
At 9:55 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Ingébuos? - Andas a ler muitos concretistas, pá!

 

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