2005: ano G
A grande figura do ano, para mim, é o «homem do piano». Misteriosamente aparecido numa ilha do Sudeste da Inglaterra, sem qualquer tipo de identificação, foi dado como autista por alguns médicos especializados. Desvendado o mistério, ficou-se a saber que se tratava de um alemão, homossexual, cujo trabalho era o acompanhamento de doentes mentais. Excelente figurino dum mundo fraudulento, o «piano man» não tocava piano - apenas tinha a intenção de suicidar-se (de preferência, com estilo). O facto de ter mantido um véu sobre a sua identidade durante vários meses, faz do «homem do piano» uma bela metáfora do modo como ainda hoje se lida com as questões identitárias. Os médicos traçaram-lhe o diagnóstico, certamente fazendo o melhor ao seu alcance, mas a realidade era outra bem diferente daquela que a medicina determinara: uma realidade escondida por detrás dos fenómenos a partir dos quais se traçam diagnósticos. No fundo, a identidade de cada um é um pouco isso, é um pouco, senão muito, daquilo que se esconde no imo daquilo que se quer mostrar. Ser o «piano man» homossexual, confere à história uma dimensão particularmente simbólica. Num ano em que as questões da homossexualidade estiveram permanentemente na berra, mormente no caso português, só o «homem do piano» poderia ser considerado a grande figura mundial de 2005. Ele foi/é uma metáfora perfeita do universo homossexual, com todas as suas fraudes e encobrimentos. Mas vamos ao balancete: logo no início do ano, alguns homossexuais de Viseu queixaram-se de perseguições sistemáticas por parte de um denominado “gang”; nos jornais, a questão da homossexualidade foi alvo de polémica como há muito não se via (refiro-me sobretudo ao debate mantido por escrito, nas páginas do jornal Expresso, entre João Pereira Coutinho e António Guerreiro, debate esse que acabaria por disseminar-se por outros meios de comunicação); às televisões chegaram programas com uma maquilhagem claramente gay (é o caso flagrante do Esquadrão G, na SIC, versão do reality show americano Queer Eye fo the Straight Guy, mas também o inclassificável Senhora Dona Lady, onde um concorrente masculino que melhor fizesse de mulher ganhava 50 mil euros); do aparecimento desses programas televisivos não estará dissociado o sucesso mediático de José Castelo Branco, vencedor de uma edição da Quinta das Celebridades, na TVI (estação onde as personagens gay apareceram amiúde nas novelas de produção nacional, tacteando o êxito de exemplos similares vindos doutras paragens: novela brasileira Senhora do Destino ou a série americana The L Word). A homossexualidade dá audiência. Foi, por isso, motivo de espectáculo. É claro que isto tem os seus contras, nomeadamente o continuar-se a olhar para a homossexualidade como em tempos se olhavam os freaks numa feira de aberrações. Seja como for, é já um sinal de que alguma coisa está em mudança nas tendências sociais dos portugueses. Não obstante, o surgimento destes programas deu azo a reacções mais ou menos declaradas: o Partido Nacional Renovador promoveu uma manifestação em protesto contra aquilo a que apelidou de “lobby gay”; na Internet circulou um abaixo-assinado insurgindo-se contra a exibição do programa Esquedrão G, considerado pelos autores do referido abaixo-assinado como «promoção do comportamento homossexual». A aprovação do casamento entre homossexuais em vários países, assim como, em alguns casos, o direito à adopção de crianças por parte de casais gay (de recordar, por exemplo, o caso espanhol), voltou a colocar na agenda política os chamados temas fracturantes que concernem à comunidade homossexual. A resposta do Vaticano não se fez esperar, proibindo os homens com tendências homossexuais de serem admitidos em sacerdócio. Em Portugal há ainda a registar o famigerado processo da proibição de manifestações de afecto numa escola em Vila Nova de Gaia, motivado pelo namoro assumido entre duas alunos dessa mesma escola. O ano gay terminou com o casamento de Elton John, assim como com alguns discos e filmes de inspiração homossexual no topo das listas de melhores do ano: o álbum I am a bird Now, de Antony and the Johnsons, ou o filme Brokeback Mountain, do realizador Ang Lee. Por estas e por outras, não admira que o jornal Expresso encerre 2005 com este título de capa: Um milhão de portugueses são homossexuais. Quer-me parecer que a procissão ainda vai no adro. Por este andar, dada a espectacularização a que a homossexualidade tem sido sujeita, arrisco prever uma "escalada" de homofobia mais ou menos sub-reptícia para o ano que agora inicia. A piadinha homofóbica, já o sabemos, faz as delícias dos espectadores do Levanta-te e Ri. Era bom, no mínimo, que ficássemos pelas piadas… Terminemos, então, com aquele que, pelas razões acima transcritas (e por outras, claro), deverá ser considerado o grande poema português do ano de 2005: Homossexualidade, de Joaquim Manuel Magalhães, publicado em Maio no n.º 4 da revista Telhados de Vidro. Aqui fica a primeira parte:
Homossexualidade
1
Numa nação de alternativa desolada
dificulta uma segura reivindicação.
Pouco nela frutifica.
A cabaça, o aroeiro, a arnica.
Pondero o alcance do tiro.
Quem encobre a sua natureza
acaba entaipado na janela.
A rejeição agrava
a presença camuflada.
Que germinará dela?
Inerte.
Se tivesse partido (pensei nisso
muito) perdia-te.
Não saí.
Enfrentei o prado que apedreja
e elegi
vincar a minha condição.
Indesejado.
Amanhã, o encantado aguardei.
Ameaçador e familiar, de sempre
e sempre comovente, beijo que dei
e que me deu.
Não o lôbrego entardecer.
Melhorar o presente.
Amplidão.
O aguaceiro recobria o corpo nu,
a sagacidade da ira. Uma agitação ardia.
Tu.
Ronda.
Era a minha décima oitava travessia de junho
e encontrei em dezembro o convite a tonalidade
o ombro no metal da coluna vizinha. Vinha.
Homossexualidade
1
Numa nação de alternativa desolada
dificulta uma segura reivindicação.
Pouco nela frutifica.
A cabaça, o aroeiro, a arnica.
Pondero o alcance do tiro.
Quem encobre a sua natureza
acaba entaipado na janela.
A rejeição agrava
a presença camuflada.
Que germinará dela?
Inerte.
Se tivesse partido (pensei nisso
muito) perdia-te.
Não saí.
Enfrentei o prado que apedreja
e elegi
vincar a minha condição.
Indesejado.
Amanhã, o encantado aguardei.
Ameaçador e familiar, de sempre
e sempre comovente, beijo que dei
e que me deu.
Não o lôbrego entardecer.
Melhorar o presente.
Amplidão.
O aguaceiro recobria o corpo nu,
a sagacidade da ira. Uma agitação ardia.
Tu.
Ronda.
Era a minha décima oitava travessia de junho
e encontrei em dezembro o convite a tonalidade
o ombro no metal da coluna vizinha. Vinha.
4 Comments:
Também achei interessante a saga do «piano man» (alguns garantiram até que tinham visto o homem tocar o dito instrumento com virtuosismo!!!). Mas, para mim, o melhor «piano man» é mesmo a canção (a grande canção) do Billy Joel.
Um abraço.
arrisco dizer que um dia destes seremos obrigados, pelo estado, a circular com uma identificação no bolso a dizer que podemos ser homens normais (hetero,,,ou lá que é isso)
"Ele foi/é uma metáfora perfeita do universo homossexual, com todas as suas fraudes e encobrimentos." Stefan Zweig em "Confusão de sentimentos", um livro dos anos 20, ilustra bem o mundo tortuoso das "fraudes e encobrimentos".
tens toda a razão, rui pedro.
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