5.2.06

Nunca gostei de sapatos com buracos

Nunca gostei de sapatos com buracos, e logo aqui neste país onde chove o Inverno todo, a Primavera e o Outono concorrem para lhe bater o recorde e o Verão, que não tem pretensões de tanto, contenta-se com cinquenta por cento.
Entre a graxa dos meus sapatos uma placa que à primeira vista parece póstuma “Dr. Miller Psychiatrist 640-4336”. Alguém é capaz de me explicar como é que o Sr. doutor conseguiu a proeza de viver 3696 anos? E se ele sabia o segredo da longevidade por que será que não contou a ninguém, nem registou a patente? Vistas bem as coisas também não interessava assim tanto, deve ser extremamente desgastante um homem ter que se preocupar com os problemas dos bisnetos dos seus tetranetos, além de gastar verdadeiras fortunas em prendas de aniversário. Lugar estranho escolheu o Sr. Dr. para a sua última morada. A vista nem é particularmente agradável, é virado a norte e ventoso.
Eu gosto deste lugar, aqui tem-se outra percepção das coisas, será que o dono do quinto andar sabe que visto daqui o apartamento que ele paga mensalmente ao banco funde-se com o do quarto andar? Mesmo assim tem mais sorte que o desgraçado do rés-do-chão a casa dele simplesmente desaparece.
Já repararam naquele homem lá em baixo? Vai vergado ao peso da gabardina.
E também não compreendo porque é que aqueles carros se dirigem todos para o mesmo lado, parecem que sabem a onde vão, coitados, não se aperceberam ainda que indo sempre em frente vão parar irremediavelmente ao mesmo lugar.
As linhas supostamente paralelas que daqui se vislumbram unem-se num ponto provavelmente um metro abaixo do solo umas brancas, outras cinzentas, traçam um caminho inútil onde ninguém passa.
Tenho os pés molhados e a cabeça cansada, dizem os outros que não sou normal, mas também não são capazes de me dizer o que sou. Sei que vejo o mundo de uma forma diferente dos ditos normais. Afinal o que é ser normal? Ou não o ser?
Porque é que eu tenho esta necessidade de estar só, em sítios altos, ventosos e virados a norte? Será que isso faz de mim louco? Penso que não.
O que faz de mim louco é usar simultaneamente fatos pretos Armani e meias com bonecos do Pato Donald, e gostar de estragar folhas impecavelmente brancas com disparates que só eu posso entender.
Ainda um dia gostava que alguém me dissesse o que sou.
- O Senhor é esquizofrénico! - Estava o problema resolvido. Passava a ser algo que se encaixava num grupo patológico perfeitamente definido e limitado. Com alguma sorte até me passavam um documento.
Aí sim podia ser feliz. Fazia tudo o que me lembrasse, tapava os buracos dos sapatos, e se alguém me apontasse o dedo, mostrava-lhe o atestado. Fiz-lhe caretas? Apalpei o rabo à enfermeira na sala de espera? Entrei no balcão de atendimento do aeroporto e pus-me a dar informações? Ora aqui está caríssimo Senhor normal, o motivo da minha anormalidade, sou esquizofrénico e divirto-me à brava.
Aurora Silva