26.10.06

Ligação Directa

O mais recente álbum de Sérgio Godinho, intitulado Ligação Directa, está recheado de excelentes canções. Começa assim: «Ide ao dicionário / «d» de deusa / «a» de amor / por amor dos deuses! / Para quê tanta palavra? / Depois é tudo ao contrário / nada a nada corresponde / é bem pior, bem melhor / mas porquê, como, e quando, e onde?» O tom interrogativo mantém-se no tema subsequente, o primeiro a rodar nas rádios, com um arranjo de cordas a pontuar estrofes que nos deixam assim num misterioso embevecimento. A escrita de Sérgio Godinho é de uma sensibilidade sem par no panorama português, combinando eficazmente o lúdico com uma melancolia que nunca resvala no sentimentalismo bacoco que por aí prolifera. Mas importa perceber que, nestas canções, não existem clivagens entre domínios diversos como a perspectiva social e política e a temática amorosa. Os dois fundem-se no que pode ser entendido, muito simplesmente, como canções sobre a vida. Não a vida delimitada numa das suas dimensões, mas a vida total e absoluta, onde tudo conflui e se entrelaça. Isso nota-se tanto quando o tom é de marcha alfacinha, indo beber aos ritmos tradicionais portugueses, como quando opta por um registo mais personalizado. Uma das minhas canções preferidas, pelo que tem de irónico e socialmente concludente, é O Rei do Zum-Zum (Há ainda O Às da Negação e O Big-One da Verdade). Eis as três últimas estrofes desse rei dos tempos modernos:

Eu quero entrar em grande
e não pela metade
talvez que não haja
outra oportunidade
p’ra apalpar de perto
o corpo à eternidade
na verdade quero ser, sei lá,
o número um
eleito o rei do zum-zum
zum-zum
eleito o rei do zum-zum

E vou correndo de ecrã em ecrã
da sitcom ao site ponto com
a ver se nalgum deles
se ilumina o meu nome
eu quero a fama e o proveito
(ninguém é perfeito…)
eu quero a fama e o proveito
ninguém é perfeito

Mas se um dia já não for famoso
arco-íris desmaiado
não me rabisquem nas revistas
das salas de espera dos dentistas
vão ao mapa cor-de-rosa
redesenhem poema e prosa
com conteúdo sólido e gasoso
p’ro melhor argumento adaptado:
Foi famoso por ser famoso