16.1.07

A circunstância da ética da circunstância



Uma das vantagens das imagens de satélite e da fotografia aérea é permitir-nos uma perspectiva mais global de um certo fragmento da realidade. No entanto, esse fragmento, como bem sabemos, não se esgota na perspectiva global que dele tenhamos. Para o entendermos é fundamental chegarmos os olhos às suas particularidades. Teremos que recorrer, em última instância, a um microscópio – isto se pretendermos entender esse fragmento em toda a sua complexidade. O problema é tanto mais difícil quanto mais extenso for o objecto da nossa observação. No limite, para termos uma visão global da realidade teríamos que recorrer a engenhos ainda por inventar. A filosofia, que desde sempre procura ser uma tentativa de compreensão do mundo na sua totalidade, depara-se muitas vezes com este problema. Daí que a grande maioria dos filósofos faça sempre questão de sobrevalorizar a função crítica e problematizante da filosofia, relegando para segundo plano as eventuais respostas que esta ofereça em consequência das suas reflexões. Diversos filósofos escreveram obras imensas para concluírem a impossibilidade de uma resposta universal aos problemas que colocam, mostrando assim que a filosofia é sempre mais um esforço de compreensão do que de explicação. Tive um professor que falava também dos autores cujo discurso nos exigia permanentemente o recurso a um satélite para a compreensão das suas ideias. Entre esses autores, destacava-se, por exemplo, o alemão Karl-Otto Apel, autor de uns Estudos de Moral Moderna que começam logo assim: «A rigor, o título do presente trabalho deveria ser: “O jogo de linguagem transcendental da ilimitada comunidade de comunicação como condição de possibilidade das ciências sociais”.» Seria, está de ver, um título bem mais interessante e provocador. Mas Apel resolveu simplificar no título o que não simplificou na obra. Questionando-se sobre «a carência de uma ética universal, isto é, vinculadora para toda a sociedade humana», o filósofo procede a uma distinção que não pode deixar de nos inquietar: «Se, em vista das consequências, hoje possíveis, de acções humanas, distinguirmos entre uma microesfera (família, matrimónio, vizinhança), uma mesoesfera (patamar da política nacional) e uma macroesfera (destino da humanidade), então será facilmente demonstrável que as normas morais, actualmente eficazes entre todos os povos, ainda estão sempre predominantemente concentradas na esfera íntima (sobretudo na regulamentação das relações sexuais); já na mesoesfera da política nacional elas estão, em larga escala, reduzidas ao impulso arcaico do egoísmo grupal e da identificação grupal, enquanto as decisões propriamente políticas valem como “razão de estado” moralmente neutra. Mas, quando é atingida a macroesfera dos interesses humanos vitais, o cuidado por elas ainda parece estar confiado, primariamente, a relativamente poucos iniciados». Mas quem serão estes poucos iniciados? Como poderemos determiná-los na vastíssima manta da humanidade? Julgo que a parte mais considerável dos preceitos éticos e morais – termos que podem ser usados, como faz Peter Singer, indiferentemente – tem a sua origem numa necessidade básica: a da organização da convivência social. É na relação com o outro que o homem descobre o que é ou não moralmente aceitável, o que é ou não ético. Quando concluímos que não devemos matar o nosso semelhante, essa conclusão tem em vista a preservação de uma ordem social. Mas essa preservação aceita excepções: é moralmente aceitável matar alguém, por exemplo, em legítima defesa. O facto de aceitarmos esta excepção como moralmente aceitável torna, automaticamente, a ética dependente da circunstância. O mesmo se pode afirmar acerca de outros situações muito actuais: como vão os países desenvolvidos convencer os que estão em vias de desenvolvimento a não cometerem as mesmas asneiras ambientais que os primeiros cometeram podendo, assim, chegar ao nível económico a que chegaram? Não se torna algo imoral dizer a alguém que está a morrer de fome que não deve matar um animal e comê-lo porque esse animal tem direito à vida? Há circunstâncias que alteram, de facto, a nossa relação com as certezas éticas às quais chegamos através de uma panorâmica via satélite. Quando descemos à microesfera a nossa percepção sobre a tal macroesfera pode e deve-se transformar, sob pena de nos tornarmos fanáticos de uma luz que é sempre a dos poucos iniciados que ainda podem brincar com imagens de satélite e fotografias aéreas.

6 Comments:

At 1:48 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Seguindo o pensamento do Apel, poderemos dizer que há quem tenha confundido a mesosfera com a macroesfera, e fazer dessa confusão uma boa imagem para si mesmo. As 'vontades' de quem decide na mesosfera, tem implicado constantemente com o rumo da humanidade.

 
At 2:07 da tarde, Blogger hmbf said...

Lá isso é...

 
At 5:56 da tarde, Blogger Logros said...

Henrique,


Continuo a pensar porque já li sobre o assunto - que as palavras palavras "ÉTICA" e "MORAL", embora coabitem na mesma esfera semântica, não significam o mesmo. Até porque certas traduções dos filósofos não são confiáveis.
Mas, prometo, qwuando tiver tempo, tirar isso a limpo, nos meus alfarrábios.
Até porque ninguém diz, por ex. "ética sexual", mas sim "moral sexual". Há diferenças. Muitas palavras usam-se anodinamente, mas precisam de ser interrogadas, como sabe.

Saúde, como costuma dizer.
Vi.

 
At 6:36 da tarde, Blogger MJLF said...

Henrique:
A leitura deste post obrigou-me a sair de mim própria e a ter vários pontos de vista sobre a ética. É algo bem mais pedagógico que o meu depoimento sarcástico corrusivo, como lhe chamou o fag, onde sinto que me exedi. Bom, esta leitura ajudou-me bastante a repensar algumas coisas.
Maria João

 
At 2:16 da manhã, Blogger Logros said...

Caro Rique:

Ora aqui está o meu ponto, bem explícito no seu comentáriozinho.

"A MORAL É NORMATIVA"".
E toda a gente percebe, lembrando-se das ex-professoras de Moral, salazaristas.

"A ÉTICA É ESPECULATIVA".
Logo, não dá receitas e problematiza e reflecte.

Ainda falta aludir a incidências epocais e primórdios das duas matérias, que muito elucidarão.

Quanto às "Comissões de Ética" não são mais que cóios vaticanenses e conservadores, que existem para empecilhar as descobertas científicas, sobretudo se a canga ou jugo do Género Feminino da Humanidade, ameaça desabar. É possível que esteja lá gente boa, mas os sinistros vaticanenses é que mandam. Logo, a palavra "Ética" é só para meter gato por lebre.

Quanto à "Ética Prática I" e à "Ética Prática II", continuo sem saber qual a FAC. que ministra essas cadeiras. Que juntas com a "Ética da Nacessidade I e II e III", não auguram lugares muito recomendáveis.

E olhe que ainda não fui aos alfarrábios...

Obrigada.

Vi.

 
At 4:19 da tarde, Blogger Logros said...

=brigado Henrique pelo esforço alfarrábico, que lerei com atenção.

Quanto ao diminuitivo de comentário, foi apenas uma "função fáctica" do discurso, um aligeiramernto carinhoso.

Quanto à "Ética do Aborto", vi na SIC, mais essa publicidade do NÃO armada em Filosófica, com uma merda de um livreco editado AGORA, ão hipócrita e padreca, descentrar a questão.

VOCÊ SABE QUE O QUE SE TRATA È DE MODIFICAR UMA LEI INEPTA, ARCAICA, DESAJUSTADA E QUE SÒ PRODUZ EFEITOS PREVERSOS.

E COMO O INFERNO E PROVAVELMENTE A POLÌCIA JÀ NÃO VÂO ACTUAR; TRATA-SE DE CHAMAR UNS "ÉTICOS" PARA IMPRESSIONAR OS PACÓVIOS.

O "filósofo" apresentado pelo impante e pretensioso CRESPO, COMETE NO LIVRO UMA GRAVE INEXACTIDÃO:
Só fala de fetos.
Nada de zigoros - óvulo fecundado
Nada de embriões -até às 9, 10 semanas.
SÒ DEPOIS É QUE É FETO.

Logo o título deveria ser:
"A ÉTICA DOS ZIGOTOS, EMBRIÕES E FETOS."

E com isto encerro as minhas visitas a este post, até porque da "ética prática" da IVG,num país atrasado e farisaico, também apanhei no pêlo.E não foram hipócritas SPA, mas sim terror e revolta por ter nascido portuguesa, num país de Inquisidores e mercado negro.
Só que os meus "crimes" já prescreveram há muito.

E aguardo com alguma esperança, que também a esse nível Portugal entre na Europa, 33 anos depois da "Revolução".


PS- E sobretudo os discussores éticos, não se esqueçam de acabar com enforcamentos, Bushes, assassínio e agressões diárias de mulheres e de crianças, a brutalidade da caça, das touradas, etc.
Têm muito que "eticar" antes de se meterem nas FALHAS MENSTRUAIS DAS
MULHERES.

 

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