MÁQUINA-ÓRGÃO
É impossível determinar até onde ia a paixão dos apaixonados de Sócrates. Podemos imaginar Aristodemo e Ágaton num festim orgíaco, levados pela embriaguês, elogiando o amor nos braços do mestre. É-nos legítimo incluir Alcibíades neste exército de amantes, pensá-los a todos num leito de sensualidade com tons de Rubaiyat. Vinho e sexo são há muito conjugação frutuosa entre sábios das mais diversas estirpes. Beber, cantar, conversar… e amar, não são senão gestos do intelecto num corpo que se procura realizar. Pausânias queria uma lei que proibisse o amor com adolescentes. Não pelos adolescentes, mas pelos amantes que, deslumbrados com a juventude, facilmente se perdem num amor sem nobreza, «realizado com vileza», indigno. «E por indigno entendemos justamente esse amante popular, que prefere o amor do corpo ao amor da alma, e não guarda constância porque o objecto a que se prende não é também constante». Mas inconstante é o próprio amor. Logo, também aquele que ama. Quem é aquele que ama? O que se diz quando se diz amor? Que poder esse o do verbo indecifrável? O poder do amor é andar nu e não sentir vergonha por isso, como naquele tempo em que o homem e a mulher eram um só ser. Penso nisso enquanto olho uma fotografia de Man Ray, Erotismo Velado (1933), uma fotografia que o próprio terá caracterizado como um tipo de poema plástico. Tinha razão Ágaton ao observar «que todo o homem bafejado pelo Amor, «mesmo antes avesso às Musas», adquire o dom da poesia». Importa porém actualizar as palavras de Ágaton, pois nenhum dom é a poesia. O bafejo do amor acorda no homem instâncias adormecidas, esse campo de andar nu sem sentir vergonha disso, como no tempo em que homem e mulher eram um só género. Dessa dança nasce e vive a poesia, para na palavra morrer como um corpo que se desnuda. E, ao contrário do que possa parecer, não longe disto andava Diotima quando via no amor um intermediário entre mortal e imortal, entre o humano e o divino. Divinas são as coisas que florescem nesse corpo dos homens, o amor. Não o resumamos a mais, olhemos antes a fotografia de Man Ray e vislumbremos nela a nudez de não ter vergonha, essa nudez que uns dirão dúbia, outros essencial, outros ainda, como Aristófanes, caso fosse vivo, andrógina. A arte, toda a arte, é fruto dessa reunião que remete para um estado original, celular, tão simples quanto 1 mais 1 ser igual a 1. O que nos parece estranho agora, só assim parece por do estado original já nos termos afastado o suficiente para que nada vejamos além da lógica que as necessidades dos sentidos foram exigindo ao corpo. A fotografia de Man Ray é ainda mais estonteante por ao lado desse corpo que é o nosso colocar um outro corpo, mecânico, como que antecipando essas máquinas desejantes de que falaram Deleuze e Guattari. Tudo é máquina? Pode ser que sim, desde que lá dentro venha o amor.
6 Comments:
ò Henrique, se continuas a escrever assim ainda te dou um par de estalos, bolas, o textos é fortissimo, seu filho da...
Maria João
obrigada, Henrique.
('só' mais um a re-afirmar o 'award'...)
mais um delicioso texto. Man-Ray fez tanto pela fotografia que hoje em dia dá vótimos ver muito do que se anda a fazer, e com a democratização da fotografia trazida pelo digital ainda piorou. a fotografia depois de Man-Ray atingiu um patamar de extrema dificuldade.
Jorge Garcia Pereira
segunda-furia.blog.com
Excelente!!
obrigado a todos, sobretudo ao man ray.
A fotografia é impressionante, o andrógino corpo-máquina. E o texto está excelente.
Apenas faria dois reparos.
A mim parece que beber, cantar, conversar… e amar, são gestos do desejo ( num corpo que procura se realizar ), nada têm com o intelecto.
E, ainda que me agrade extremamente a frase "Dessa dança nasce e vive a poesia, para na palavra morrer como um corpo que se desnuda" , a poesia não morre na palavra, eleva-a a outra instância, como se elevam os corpos que se desnudam no amor.
Um abraço,
Silvia
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