4.6.07

AGORA ESQUECE-TE

Onde a ditadura do politicamente correcto se reflecte melhor é na forma como abordamos o esquecimento. Já tenho dito que o esquecimento não consiste numa extinção do passado, ele é apenas um adormecimento dos factos, uma suspensão da memória. Sucede que essa suspensão processa-se muito em função dos instintos de sobrevivência intrínsecos à natureza humana, adaptados às idiossincrasias de cada um. Num campo mais alargado de observação, as sociedades tendem a esquecer este ou aquele facto histórico mais em função de uma necessidade de organização da chamada memória colectiva do que pela ausência de significação desse facto. Deste modo, aquilo que esquecemos não é tanto o que menos importa como parece ser o que mais nos fere; por outro lado, aquilo que lembramos não é tanto o que menos nos fere como parece ser o que mais importa. Mas o que mais importa em que sentido? No sentido da tal memória colectiva que urge organizar, estabelecer, industriar. Repare-se no modo como são lembradas as catástrofes do passado e, sobretudo, as catástrofes do passado que são lembradas. Entre os portugueses, por exemplo, é muito mais fácil – assim como parece ser mais importante – lembrar certas catástrofes da História Universal do que, para não ir mais longe, as atrocidades por nós cometidas em África. É raro encontrar alguém a citar um qualquer massacre colonial debaixo de um sublinhado do tipo: «é preciso não esquecer», «contra o esquecimento», etc, etc, etc. Por outro lado, lembramo-nos com uma enorme facilidade – e ainda bem que o fazemos – daquelas datas que convém lembrar em função da tal necessidade de organização da memória colectiva à qual subjazem sempre intenções políticas muito específicas. Julgo que na memória das populações está mais presente a história do holocausto nazi do que Hiroshima e Nagasaki. Raramente nos lembramos, “comemoramos” ou queremos evocar os tempos da escravatura. Serão tempos de um matiz tão sinistro que o melhor é serem esquecidos? Não pretendo afirmar que nos devamos esquecer de outros factos, mais ou menos simbólicos, que possam, de alguma forma, enquadrar a tragédia de vivermos sobre as mãos de poderes desumanos, nefastos, assustadoramente sombrios. O que quero dizer é que, para não ir mais longe, lembrarmo-nos da Primavera de Pequim só terá algum valor se isso nos ajudar a perceber melhor o que é hoje um «país de oportunidades», no discurso dos oportunistas, onde se continuam a perpetrar crimes contra a humanidade, crimes dos mais escabrosos, continuamente omitidos e deixados na penumbra em função das conveniências da actualidade. Da mesma forma, se a 30 de Abril passado tivéssemos lembrado o fim da Guerra do Vietname, talvez o modo como muitos olharam a actual Guerra do Iraque não tivesse sido o mesmo. É nisto que o politicamente correcto melhor se reflecte, nestas subtilezas do esquecimento, nesta natureza selectiva da memória.

8 Comments:

At 10:37 da tarde, Blogger MJLF said...

Cada vez que vou a Évora, lembro-me sempre que ali existiu a inquisição.
Maria João

 
At 2:49 da tarde, Blogger salamandrine said...

apetecia-me fazer-te uma vénia ;)

 
At 3:54 da tarde, Blogger Muntubila said...

bravo!

 
At 4:35 da tarde, Blogger Victor L. said...

Nagasaki e Hiroshima, os japoneses não esqueceram.

 
At 9:18 da tarde, Blogger Unknown said...

mais um excelente texto, mais uma excelente sequência.
Jorge Garcia Pereira
segunda-furia.blog.com

 
At 9:56 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Maria João, eu quando estive no Coliseu de Roma (http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/2005/11/uma-insnia-filosfica.html) lembrei-me mais ou menos da mesma coisa.

Tó, irei visitar esse blog. Mas só pelo futebol.

Dolphin.s, então faz. :)

Muntubila, a última vez que me disseram isso, juro, foi para me dizerem com que lavar um tacho cheio de gordura.

Victor l, podes crer que não.

Jorge, muito obrigado. É óbvio que este agradecimento se estende aos restantes.

 
At 11:45 da tarde, Blogger linfoma_a-escrota said...

SÍNDROMA PRÉ-ESQUECIMENTO

Rabugento
este interminável mar de memórias
que são os equívocos passados,
tento não perdê-los...
(muito me dilacera
a pequena ideia do
esvaír-se do tempo)
Nestes fugazes sonhos alados,
sublimes,
sempre sublimes,
desaparece o momento,
a plenitude divina em
que deixámos de acreditar
como se não tivesse acontecido,
esquecemos...

É o meu eu metamorfoseado,
orfão de deus,
bastardo das influências,
filho da decadência
que diz respeito a todos os homens.
Tal é a naúsea da alma,
tanta é a cultura proscrita
que me ultrapassa sempre
(boquiaberto),
permaneço abismado e inútil...
Todo o oculto sentido
destas sôfregas experiências
devo relatá-lo e
guardá-lo taciturno
no meu precioso livrinho
das perguntas a responder,
preciso...

Alimenta-me de ódio
(tão triste)
este deprimente desperdício
duma barbárie inconstante
(civilizada?)
que não cessa de se proclamar
(de se lamentar vezes sem conta)
em atestados de estupidez,
em rótulos espirituais,
em mensagens subliminares básicas;
é o inevitável que me enoja,
é o que vejo...
Este queixume
peculiar e reconfortante
das sensações que desejo relembrar,
todas...

É o mundo,
(louvo-o mas inquieta-me)
graças a ele
expia-se a glória da individualidade,
mas ao menos sei
que a minha bexiga mija,
que o meu coração chora,
(o amor e a morte
porque suspira,
saltando ao eixo na vida) e
que o meu cérebro se vai queimando
(sem limites,
só complexos e ressentimentos)
bem devagarinho
em pensamentos pseudo-filosóficos
(desespero e desordem)
sobre o natural,
o egocêntrismo,
este habitat de gozo
e o nada...

Assim esqueço
a frustração de desconhecer.

2002
in S&M (SEM-NOME & MAL-DITO)



WWW.MOTORATASDEMARTE.BLOGSPOT.COM

 
At 12:08 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Obrigado pelo poema, linfoma_a-escrota.

 

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