26.6.07

O PORTO TORTO

Residi praticamente oito anos em Lisboa, mas a minha cidade do coração foi sempre o Porto. Diz-se que o Porto, a cidade granítica, é uma cidade escura e triste. Talvez seja. Mas talvez essa característica contribua para que me sinta mais integrado nas suas ruelas estreitas, no bairro da Ribeira, nesses lugares onde o tom sombrio da pedra contrasta com o deboche das gentes. Eu gosto de gente sem papas na língua, mesmo quando da língua não se espera outra coisa senão uma lambidela cínica e pretensiosa. Em Lisboa também há disso. O lado castiço de Lisboa é o seu melhor lado. Mas o lado castiço de Lisboa tende a mostrar-se algo empertigado para com os forasteiros, sinal de um provincianismo que terá origem no facto de grande parte da população alfacinha ter as suas origens nos lugares da província. Ter vencido na capital é todo o estatuto que podem almejar. No Porto a coisa aparenta outra naturalidade. Aí, é-se do Porto e pronto. E, sendo-se do Porto, é-se, quer se queira quer se não queira, de uma província mais autêntica. Como desabafava o escultor José Rodrigues: «Eu quero lá saber que me chamem provinciano!» O problema é que, de há uns anos a esta parte, tenho encontrado nas pessoas que conheço do Porto alguns preconceitos relativamente a esse olhar arcaico sobre a cidade. Provavelmente, por serem de gerações mais novas, almejam um outro reconhecimento, ambicionam outro lugar no retrato da nação. Fazem mal. Acabam parecendo-se mais com os alfacinhas, ou seja, com os tais provincianos empertigados. Eu, se fosse do Porto, teria muito gosto em ser do Porto debochado e libertino, do Porto das tripas, das francesinhas, do granito, do Porto patusco e picaresco. Foi nesse Porto que emergiram escritores e artistas extraordinários, porque esse Porto nunca deixou de ser empreendedor, de um bairrismo que só deixa de ser saudável quando para ser a favor de si próprio sente necessidade de ser contra os outros. Estou-me nas tintas para os discursos maniqueístas, calculistas, arrogantes e interesseiros do Jorge Nuno e confraria Lda. Se o Porto tiver de ser a capital de alguma coisa, que não se transforme na capital das cidades portuguesas mais parecidas com Lisboa. Isso seria trágico. Temo, porém, que seja esse o paradigma actual. É certo que para quem está de fora, a percepção das distâncias acaba sempre algo obnubilada. Eu resido num distrito que faz fronteira com o de Lisboa. Se vos garanto que, hoje em dia, é-me tão difícil aportar em Lisboa como no Porto, é porque sinto as duas cidades cada vez mais parecidas uma com a outra, cada vez mais devolutas, tolamente envaidecidas, forçadamente afastadas das suas raízes, do que de melhor têm para oferecer a quem vem de fora. A última vez que fui ao Porto, senti no regresso aquela sensação de sufoco que me fez sair de Lisboa, a sensação de uma claustrofóbica ausência de autenticidade. É certo que as cidades não foram pensadas para ser autênticas, senão quando o são nos seus artificialismos intrínsecos, mas eu encontrava no Porto essa autenticidade que já não encontro tão facilmente. Talvez o problema seja meu, talvez seja do mundo, talvez a nossa identidade seja hoje a hipoteca que nos garante o sucesso rasteiro de quem passa pela vida à procura de aplausos e panegíricos na pedra tumular.

4 Comments:

At 11:54 da manhã, Anonymous Anónimo said...

O Porto está a sofrer um ataque cobarde aos fundamentos da sua identidade.

 
At 11:57 da manhã, Blogger hmbf said...

Olá Bruno Santos. Eu também desconfio que sim, mas como sou de fora não tenho opinião fundamentada sobre isso. Não queres aprofundar o tema?

 
At 1:14 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Com todo o gosto, Henrique.
A estratégia consiste na exploração de dois vectores: caos e desertificação.
O caos revela-se na absoluta falta de planeamento urbano. Melhor dito: num planeamento que visa a desordem e a antítese do próprio planeamento. Há vários anos que o coração da cidade está permanentemente em obras, como o próprio presidente da câmara tem orgulho em declarar. Essas obras eternas criam um verdadeiro cenário de cidade bombardeada, caótica, suja. É o paradigma do desenvolvimento do Portugal pós CEE que consiste tão simplesmente em manter a disfuncionalidade travestida de crescimento. O espaço urbano deixa de ser um lugar de encontro, movimento, cultura e fruição, para passar a ser simplesmente um monte de entulho, uma ruína que transforma a experiência da cidade em algo negativo, desmotivador e fracturante. Um joguete nas mãos do poder político que despreza por completo o valor civilizacional, histórico e humano da cidade e a vê simplesmente como um “activo” a rentabilizar permanentemente (leiam-se por favor as declarações de Paulo Morais, antigo vereador da CM do Porto, que despoletou mais um dos processos que o Ministério Público enterrará nas catacumbas do conluio).
Quem hoje passear pela Baixa ou por zonas mais antigas e nobres da cidade (Mouzinho da Silveira, Flores, Alegria, D. João IV e tantas outras) verá simplesmente a ruína exposta à memória de quem já se reconheceu nesses espaços, como se houvesse uma premeditação sádica em transformar essa mesma memória, a identidade do Porto, num arrependimento, numa má consciência, numa sensação de abandono e apocalipse. Isto deprime profundamente a cidade e, mais do que isso, prepara-a para a voragem do cimento que soterrará o seu carácter.
Tudo isto contribui para que as pessoas desertem, transformando o espaço público num fantasma, sem vida nem dignidade. Pior ainda, abre portas aos urbanizadores do Zero, os Sizas e os Soutos Mouras, que podem então impunemente contaminar a cidade com a sua estética árida, criando verdadeiros buracos negros como a Avenida dos Aliados ou a Avenida Vimara Peres.
Da ruína urbana à decadência cultural vai um passo de pardal. O La Féria que aproveite a rima e faça uma Revista panike.
Cumprimentos.

 
At 3:16 da tarde, Blogger Unknown said...

Nasci e vivo no Porto, e não entendo porque falam tão mal da cidade de hoje. O que o Henrique diz eu entendo, tem havido de facto um distanciamento da genuina identidade das gentes da cidade, agora em relação ao espaço construído por muito que haja para fazer, e evidentemente que há, o Porto nunca esteve tão bem. Bruno, se duvidas houver compre um livro editado aquando o Porto 2001 de nome 'Registos de uma transformação' e veja como o Porto era por exemplo em 1999! se formos então criticar a CEE, o tema agudiza-se, pois as obras que hoje fala, que estão finalmente a concluir o circuito do electrico pela baixa da cidade, obras que me deixam bastante esperançado, antes também as havia (sempre me lembro da critica dos poucos visitantes à cidade nos anos 80 sobre esse assunto), mas para além das obras haviam lixeiras, e muitas, lamaçais, indústrias que poluiam de uma forma que me faziam chegar a casa negro coberto por um pó de borracha derivado a uma fábrica que largava os residuos e desperdicios da mesma a céu aberto, do caos rodoviário no centro da cidade que colocava o porto e as suas ruas estreitas como uma das cidades com mais CO2 nos passeios públicos, etc etc. Há muito a fazer no Porto, como o há em Lisboa, mas estas duas cidades nunca estiveram tão bem, pena é a memória curta e o raio da época do romantico do nosso sombrio século XIX que nos atirou de vez para o passado em vez de absorvermos o futuro.
Os grandes problemas destas duas cidades já estão há muito nas periferias, mas isso é outro tema.

Jorge GP
loucomotiva.blog.com

 

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