23.9.07

CASAMENTO

Nunca quis casar. Razões muito fortes sustentam esta obstinada recusa. Primeiro, detesto festas familiares (casamentos, baptizados e, em certos casos, funerais). Segundo, o casamento ameaça-me a liberdade. Sinto repulsa por tudo o que me ameaça a liberdade, ainda que tenha da minha liberdade uma consciência pouco ortodoxa. Por exemplo, conheço pessoas que falam dos filhos como se estes fossem grilhões. Para mim são algo semelhante ao que as ex-colónias eram para Portugal na concepção do ditador Salazar, ou seja, uma extensão natural de mim próprio. Sendo assim, nunca senti que as minhas filhas tenham alguma vez obstaculizado o exercício da minha liberdade. Mas não compliquemos. No dia em que os meus pais fazem 45 anos de casados, fico a saber de uma história deliciosa. Um casal que está a divorciar-se depois de ambos os cônjuges terem concluído que andavam a ser traídos em relações cibernéticas. O inusitado nesta história é que, falhados no casamento real, eram amantes em registo virtual. Isso mesmo. As entidades (nestas coisas da Internet o melhor é falarmos sempre de entidades) com quem mantinham relações virtuais eram a pessoa a quem haviam confiado a aliança matrimonial. A queixa do marido, depois de ter dado pelo caso, é absolutamente extraordinária. Em não sei quantos anos de casamento a mulher nunca lhe tinha dito coisas tão bonitas como as que lhe dizia no chat onde travavam, presumo, escaldantes e apaixonados diálogos. No tempo de Platão nada disto seria possível, o que apenas nos leva a admirar ainda mais o seu ideal de República no que respeita à temática do casamento. Ele não o diz assim, mas ao parágrafo 460ª fala de «tiragens à sorte engenhosas». A expressão é de uma eloquência tal que não pede qualquer explicação. Julgo que o casamento seja isso mesmo: uma tiragem à sorte engenhosa. No caso de meus pais, que há 45 anos trabalham com engenho a sorte que lhes coube, isso só pode ter uma explicação: a minha mãe, de tão ingénua que é, nunca reparou na falta de sentido de humor de meu pai. Ou então, essa ausência de humor resulta, por ironia, na sempre inexplicável graça do amor. O mais estranho disto tudo é pensar que, para eles, 45 anos parecem não ser mais do que três filhos e quatro netos. O tempo de manter (re)unida, à sua volta, a espiral da família, o tempo de chegar ao fim constatando, como já Platão dizia, que os casamentos sagrados são os mais úteis. Neste aspecto, julgo, muita água correu na sociedade em que vivemos. E muita ainda correrá. Principalmente porque a noção que hoje temos de utilidade já não está tão arreigada à ideia de sacrifício, muito cristã e burguesa, mas sim à de conforto, muito burguesa e agnóstica. Só isso explica a falta de engenho que hoje se verifica nas tiragens à sorte, cada vez mais apenas sorte e menos engenho. Como sorte não tenho e o engenho coxeia-me, o melhor será mesmo continuar como estou. Unido pelo facto de não me ter querido casar, evitando festas fúteis, agrilhoamentos dispensáveis, tiros no pé.

7 Comments:

At 8:00 da manhã, Blogger ruialme said...

ó pá!! os meus pais também fizeram 45 anos de casados, fez ontem uma semana.

 
At 9:01 da manhã, Blogger blimunda said...

deixa ver se eu entendo: o casamento ameaça-te a liberdade: a união de facto deixa-te livre. não, não entendo. se te referes ao papel passado pelo sistema... mas qualquer relação estável monogâmica vai dar ao mesmo. todos os meus amigos e não são poucos, porque sou de uma geração que abraçou essa causa, cujas relações são uniões de facto vivem essas relações como se de facto estivessem casados de papel passado: ou seja, isso normalmente é conversa de homem: liberdade, filhos, patátá... porque na verdade cada relação, seja de que tipo for, vem com um pacote de obrigações e direitos... não gostares de celebrar de forma tradicional até posso entender. mas se agora até já tens filhas em que é que és mais ou menos livre dentro da tua relação sem papel passado? no tempo dos meus pais, que também já fizeram 45 anos de casados, é que essa opção era revolucionária. mas nunca uma relação ganha estabilidade ou respeito ou liberdade por ter ou não o aval dos outros... não? e, os filhos serem extensões naturais de ti próprio, assim como as capilares, é? não posso concordar com esse modo de ver...mas fica para outra altura

 
At 10:10 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Caro Henrique ao fim de anos a atar laços faz diferença mais um nó?
Sim. Não. Depende.
As reflexões sobre o casamento têm pano para um enxoval!

 
At 10:14 da manhã, Anonymous Anónimo said...

E o romantismo da ritualidade?

 
At 10:56 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Rui, parabéns.

Blimunda, a minha resposta ao teu comentário está neste post: http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/2006/09/2-em-1-reviso-da-matria-dada.html . A conclusão: «Perguntar-me-ão: mas qual a diferença entre o casamento e a união de facto? Para a maior parte das pessoas não haverá diferença alguma. Para mim há. Começa, desde logo, na forma de encarar a união. O casamento é como um poema sujeito às regras da métrica. A união de facto é em verso livre.» Sendo menos lírico e mais prático:

1. Mas se agora até já tens filhas em que é que és mais ou menos livre dentro da tua relação sem papel passado?

Como digo no post, a minha noção de liberdade, subjectiva como qualquer outra, é muito pouco ortodoxa. No caso, a liberdade delas não condiciona a minha pela simples razão de eu não conseguir encarar a minha liberdade de uma forma abstracta. O que é a liberdade? É podermos optar, de entre várias hipóteses escolhermos a que mais nos convém. Entre as hipóteses ter ou não ter filhos, eu escolhi ter. Foi um acto de liberdade. Elas são resultado dessa liberdade, são a concretização da minha liberdade. Tudo o que hoje faço é feito em função desse aspecto particular da minha vida, mas não porque as minhas filhas sejam algo exterior à minha vida. São parte integrante da minha vida, da minha liberdade. Como ter menos ou mais uma perna, asma ou um olho na testa. É assim que eu encaro as minhas filhas, uma extensão natural de mim próprio. Por isso, não me impedem a liberdade. São parte integrante da situação particular em que a minha liberdade é exercida. Que alguém encare os seus filhos de forma diferente, isso é lá com cada um.

2. Mas nunca uma relação ganha estabilidade ou respeito ou liberdade por ter ou não o aval dos outros... não?

Pois não. Por isso não estamos aqui a falar de opções revolucionárias. Não tomo decisões em função de as achar mais ou menos revolucionárias. Aliás, esse é um espírito que me enfada. As decisões que tomo, como casar ou não casar, fazer vida em conjunto ou viver sozinho, são apenas fruto de um desejo (terão qualquer coisa de instintivo, talvez). Logo, findado esse desejo, ser-me-á muita menos onerosa a separação. Infelizmente, sei bem o que implica um divórcio. Então quando há filhos! A separação simplifica o termo das relações, o que não significa que desresponsabilize os implicados. Muita gente pensará assim. Eu não. O que penso é que, não estando casado, mais facilmente convivo com a possibilidade de, um dia, venham as coisas a correr mal, ter de acabar com uma relação. Não doerá menos, mas simplificará. Desde logo em termos burocráticos. E aqui entra a forma como cada um lida com a burocracia. Sobre isso, sugiro esta leitura: http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/2007/07/caminhando-pelo-deserto.html .

Sissi, venha de lá esse enxoval. Mas numa coisa concordo já consigo: a ritualidade pode ser muito romântica.

 
At 12:23 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Gostei do artigo, mas para mim o estar casado não me limita a liberdade, é um completar de mim mesmo, da minha personalidade e é a "instituição" que permite com que eu me desenvolva mais como indivíduo.

Fazer filhos qualquer um faz, mas o que é difícil mesmo é ser Pai e Marido, porque de nome há muitos.Monetáriamente não sou rico, mas como Marido e Pai sou o homem mais rico do Mundo! Chego a casa e os meus filhos vêm contar-me como foi o dia na escola, as dificuldades que tiveram no liceu e contam-me os seus problemas em vez de ir contar a outros. Que sortudo sou!

 
At 2:09 da tarde, Blogger MJLF said...

Os meus pais fizeram 50 anos de casados este verão e foram viajar para a Islandia!
Maria João

 

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