COISAS QUE NUNCA MUDAM
O nosso Primeiro, salvo seja, não quer comprometer a sua oratória sobre Direitos Humanos com questões laterais tais como o Zimbábue. De há tanto tempo andarmos a discutir questões essenciais descurando as laterais, o mundo só muito lentamente vai vendo na terra a paz que vai no espírito dos happy few do costume. Em abstracto tudo se resolve, e o que para aí não falta são heróis do abstraccionismo. O concreto é que trama a coisa. Depois chega a ser cómico ver aqueles fatos engomados, aquelas gravatas de seda, babando-me de espírito enquanto corpos de gente inútil vomitam sangue, trespassados por catanadas, torturados, mais negros ainda das nódoas que o bastão deixa quando cai sobre a carne e parte os ossos. O debate sobre o "multilateralismo efectivo" deve ser muito interessante. Que dirão sobre ele os angolanos extirpados às mãos de um regime persecutório e ladrão, ou os cubanos em exílio na América onde a Pena de Morte ainda luz, ou, et voilà!, os milhões de zimbabuenses que tiveram de abandonar o seu país sob pena de lá ficarem enterrados até ao pescoço às mãos do ditador Mugabe? "Multilateralismo efectivo" e "soluções políticas abrangentes" devem ser temas de tesão incomensurável. Eu, só de ouvir estas expressões, dá-me logo vontade de fazer como o Henry do Sexus. Por falar nisso, quem leu a obra há-de recordar-se daquela passagem sobre mecanismos de defesa humanos. Miller dizia que os mecanismos de defesa do ego (conversa psicanalítica) mais difíceis de penetrar são os «fingidos písceos». «Crescem sem espinha dorsal, dissolvem-se quando lhes apetece» - advertia Henry Miller. Entre eles, a compaixão. A compaixão é, sem dúvida, o disfarce predilecto da agiotagem política. Vejam como eles fecham os olhos à miséria, ecoando discursos maquinalmente redigidos sobre "multilateralismo efectivo" e "soluções políticas abrangentes". Para quê? Para que tudo fique na mesma, para que o povo continue a ser trazido pela trela dos impostos, das grandes ilusões, de uma sensação de segurança que outra coisa não é senão medo da vida. Prometem-nos mundos e fundos, oferecem-nos discursos. E lá andamos todos, muito entretidos, como o cão do vizinho, de rabo bailante sempre que mija no sítio certo e o dono lhe acaricia as orelhas. É urgente começar a mijar fora do penico, começar por cuspir nestes discursos de circunstância, mandar as urnas às favas até que o sistema seja forçado a mudar, exigir mais acções e menos discursos, tirar todo o pilim dos bancos, deixar de pagar contas… A água que corre nos rios é nossa, caralho! Por que raio temos que a pagar? E o Sol, não é de todos? É preciso sacrificar o corpo, ser miserável, mas em grande escala, até que esses governos da filhadaputice se vejam obrigados a respeitar todos por igual. Não me digam que não estão fartos de serem chulados? Cof, cof, cof... Mas prontos, como diz o outro, façam lá um esforço. Já toparam bem a conta da luz, da água, do gás, do telefone? Topem lá bem a factura da PT e tentem discriminar aquela salgalhada toda. Ou acham que é com "multilateralismo efectivo" e "soluções políticas abrangentes" que vamos lá? Ah! Já sei. Vão acusar-me de ser utópico, de andar a ler o Tomás Morus em doses maciças. Pois deixem-me dizer-vos que é precisamente isso que vos falta, Morus em doses maciças. Experimentem. Serão logo atacados pelo sistema, cair-vos-ão logo em cima com facturas disto e daquilo, processos disto e daqueloutro, ameaçar-vos-ão com multas, chamar-vos-ão nomes estranhos, não vos deixarão respirar até que o sono se vos vá em tortura lícita, justificada à luz da lei, necessária, imperiosa. Pois que sigam o caminho dos cumpridores, deixem-se roubar à vontade, a cada esticão dêem graças e agradeçam, façam vénias, mas não descolem os olhos da novela e da futebolada, ó pusilânimes da treta. Ai Morus, Morus, como tu, também eu estou a aprender a lição: «A causa principal da miséria pública é o número excessivo de nobres, ociosos zângãos que vivem à custa do suor e do trabalho de outrem, e que no cultivo das terras exploram os rendeiros até ao osso, para aumentarem os seus rendimentos.» Já era assim no teu tempo, haverá razão para supor que no meu possa ser diferente?
6 Comments:
Excelente texto. Salutarmente rude, sem paninhos quentes. E lúcido, como o MacMurphy do "Voando sobre um ninho de cucos", quando dizia: "É justo um tipo berrar se nos pisam o filho-da-puta dum pé!".
É assim mesmo!!!
é por isso que não "trabalho" vai para 5 anos, empresas que dão 600 euros, dos quais metade é para transportes e alimentação, trabalhem eles, eu cá vou fazendo os possíveis e, às vezes, impossíveis para viver,
nelson
Caro amigo, parabéns pela catarse. E se precisares escrever mais sobre isso, escreve. E se quiseres alguém que te leia tudo, eu posso ler. Mas como sempre te disse, prefiro nesse sentido a acção e, por isso, sempre preferi a revolução. Desafiei-te mais que uma vez e nunca quiseste. Neste momento, se não me levas a mal, nem disponível estou para a revolução. É que agora, é que isto está a ficar interessante.
"O nosso Primeiro, salvo seja, não quer comprometer a sua oratória sobre Direitos Humanos com questões laterais tais como o Zimbábue.
O nosso ministro da hipocrisia, esse mesmo o primeiro, fez uma curta declaração acerca dos Direitos Humanos, pasme-se, acerca dos monges na Birmânia. Tão diferentes são esses, dos da China, ou será Tibete?
Sem noção! Para que usar palavras tão incomuns? Se mostrar um literato? Deprimente!
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