GRAÇAS A DEUS
Dias que correm mal, filmes estragados, dias parados, coxos, alimentos fora de prazo, dias de andar pelos mercados a respigar restos, dias atravessados na garganta das horas, dias que nem uma canção de Elvis Costello salva, dias que o melhor seria serem noites, dias de chegar a casa e meter abaixo todos os quadros circunspectamente distribuídos pelas paredes, dias de dizer ufa que nunca mais acabam, para, logo de seguida, voltar a citar o padre Meslier: «É evidente que o mundo está quase todo repleto de males e de misérias. Os homens estão todos eivados de vícios, de erros e de malevolências. Os governos estão cheios de injustiças e de tiranias. Assistimos em quase todo o lado a um dilúvio de vícios e maldades. A discórdia e a divisão reinam em quase toda a parte. Os pobres encontram-se quase sempre na penúria e no sofrimento, sem apoio, sem auxílio e sem consolação. Por outro lado, vemos aí muitas vezes os maus, os ímpios, os mais indignos de viver, a desfrutar da prosperidade, da alegria, das honrarias e da abundância de todos os tipos de bens. Não se pode negar o que afirmo a este respeito, e faltaria mesmo muito para eu dizer tudo o que se passa. Com efeito, quem quisesse descrever em pormenor todos os males e todas as deploráveis misérias que existem no mundo, bem como todos os vícios e todas as detestáveis maldades dos homens, teria de escrever livros inteiros. Deste modo, sendo evidente que o mundo se encontra repleto, em quase todo o lado, de males, de misérias, de roubos, de latrocínios, de crueldades, de tiranias, de imposturas e de mentiras, de discórdias e de confusões, etc., isto constitui uma prova indubitável de que não existe nenhum ser infinitamente bom e infinitamente sábio capaz de lhe fornecer um remédio conveniente, e, por consequência, não há nenhum Ser todo-poderoso que seja infinitamente bom e infinitamente sábio, como pretendem os nosso cristícolas». Obrigado meu Deus, por seres tão infinitamente bom e tão infinitamente sábio que te privaste da existência só para que fosse possível ao Padre Jean Meslier escrever estas palavras que ora nos consolam, quase 300 anos depois de haverem sido escritas. Obrigado meu Deus, por seres tão infinitamente bom e tão infinitamente sábio que te lembraste de desaparecer das nossas vidas para que pudéssemos à tua ausência acusar a culpa das nossas frustrações, dos nossos vícios, da nossa inaptidão para o bem. Obrigado meu Deus, por seres tão infinitamente bom e tão infinitamente sábio que te puseste na alheta só para que nos fosse possível pensar que, apesar de tudo, como diz o padre, em quase todo o lado, mas não propriamente em todo o lado, reina a miséria que faz escola nas bandas de onde vimos. Obrigado meu Deus. Não fosses tu, como poderíamos nós ser todos tão perfeitos, ingénuos, inocentes e castos?
4 Comments:
Meu filho é verdade que fui ingénuo...mas pelo menos criei a retórica!
Gostei do teu blog. Hei-de voltar.
"Os homens estão todos eivados de vícios."
é o que nos leva a não morrer de tédio.
deus, amen.
c, pois é.
Não acho: todo o vício tem afinidade com o tédio. São os males que nos poupam ao mesmo
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