2.10.07

O MEDO E A LINGUAGEM DOS SONHOS

James Valerio, Fear, 1995

Não possuo categorias para os sonhos. Houve um tempo em que me acordavam, pediam-me que os escrevesse. Deixava, precavidamente, um caderno e uma esferográfica na mesa-de-cabeceira. Adormeci muitas noites a olhar para aquele caderno, transformando-se ele próprio, por vezes, na matéria dos meus sonhos. Quando os sonhos me acordavam e eu conseguia escrevê-los, escrevia-os. Umas linhas, uma palavra, a descrição breve de uma situação. Alguns, terríveis, repetiam-se. Uma, duas, três vezes. Nunca mais que três vezes. Notei então que guardava invariavelmente uma imagem muito mais nítida dos sonhos terríveis. Ainda hoje mantenho uma imagem viva de alguns desses sonhos. Num deles, estava a ser assaltado. Queria pedir ajuda e não conseguia, emudecia, ficava sem voz, gritava mas ninguém me ouvia. Depois começava a flutuar. No entanto, essa sensação de estar a flutuar não era confortável, não restabelecia qualquer tipo de consolo na ausência da voz. Num outro, roubavam-me um bebé que estava a meu cuidado. Passava-se numa praça de Viena, onde eu parava para assistir a um concerto. Distraía-me do bebé, adormecido numa daquelas alcofas antigas, enormes. Quando voltava a olhar, o bebé tinha desaparecido. Ao fundo de uma rua, avistava então a silhueta indefinida de alguém que parecia levar o bebé. Começava a gritar, corria atrás dessa sombra, pedindo que me acudissem. Uma reviravolta súbita e estava eu transformado em raptor. Hordas de gente em fúria correndo atrás de mim, acusando-me de ter raptado o bebé. Depois acordava, resfolegando como um cavalo no fim de uma corrida. Lembro-me de outros, bem mais terríveis que estes. Nestes dois encontro alguns pontos em comum: o facto de ninguém me acudir, o ser como que alvo da mais pavorosa das ameaças, a incompreensão, talvez fruto, quem sabe, de uma inconsciente mania da perseguição. A verdade é que nunca padeci de tal mal, nunca desconfiei dos outros a ponto de ficar obcecado com uma putativa perseguição. Sou desconfiado, isso sim. Mas não desconfio dos outros por julgar que me queiram fazer mal, desconfio antes por estar convencido de que não me querem bem. Vivemos num mundo assim. Desde pequenos somos educados para esse tipo de relação com os outros. Lembro-me da minha mãe avisar-me para eu não aceitar nada de ninguém que me fosse estranho. Por vezes, dou por mim a repetir os mesmos avisos, as mesmas precauções, com as minhas filhas. Somos educados, desde muito pequenos, para desconfiarmos dos outros. Os outros são sempre uma ameaça à qual importa estar vigilante. Mas e nós? Não somos nós também uma ameaça para os outros? Claro que sim. Grande parte dos problemas de comunicação entre os seres humanos nasce desta muralha que começa a ser erguida, desde muito cedo, entre os indivíduos. Por isso as pessoas se defendem tanto umas das outras, amiúde esforçando-se inclusive por resguardar uma identidade, uma intimidade, uma privacidade, que não sabem já ter perdido há muito. Os nossos pequenos mundos, as nossas ilhas, as celas onde nos resguardamos dos outros, há muito estão ameaçados por um autêntico exército de defesas que nos atacam a vontade. N’O Poema do Haxixe, Baudelaire dizia que a droga atacava sobretudo a vontade. Mas mais que o haxixe, o que ataca a vontade, e ataca-a de forma infalível, é o medo, esse exército de mecanismos de defesa que temos dentro de nós, que, à força de nos resguardar dos outros, acaba sempre fazendo o contrário, ou seja, pondo-nos à mercê dos que não temem, dos que controlam o medo, dos que se servem do medo para manipular os outros, para fazerem dos outros o que bem entendem. E é curioso que, vivendo nós num mundo onde, supostamente, apenas supostamente, o medo não teria palavra, é precisamente no ataque à linguagem dos sonhos que ele mais se reflecte. Não se admirem, por isso, da linguagem dos sonhos ter deixado de estar na moda. Apagar essa linguagem da nossa razão, significa colocar-nos na boca do medo, fragilizar-nos, tornar-nos volúveis, indefesos, tão desacertados de nós mesmos como o céu que nos protege.