10.11.07

BIG ODE #3


Big Ode N.º3 é o primeiro a vir à luz com o apoio do Ministério da Cultura e da Direcção Geral das Artes. Rodrigo Miragaia, o editor, há muito havia feito a chamada para a Fusão. Não admira a quantidade de trabalhos que compõem o índice deste número, já que Fusão é, por inerência, uma das características principais deste projecto. A coordenação editorial, a cargo de Maria João Fernandes, conseguiu reunir um leque suficientemente variado de vozes para que possamos dizer ser este, precisamente, um número de fusão de linguagens, formas expressivas, processos de criação. É verdade que o óbvio se manifesta, na medida em que muitos autores enveredaram pelo caminho do erotismo, talvez o atalho mais imediato da fusão. Mas também é verdade que nunca esse óbvio é desinteressante a ponto de nos deixar vazados. Como sou parte interessada, remeto-vos já para a minha colaboração, desta feita ampliada por uma entrevista que tive o prazer de realizar a A. Dasilva O. e que aparece transcrita, sem qualquer tipo de censura, das páginas 50 a 59. É com palavras do autor de Punhetas de Wagner que prossigo: «não me venham com a filha da puta do mistério». Não há mistério nas fusões que aqui se processam. Estejamos a falar de poesia, do diálogo que esta estabeleça com o desenho, a fotografia, a pintura, outras artes, ou estejamos pura e simplesmente a falar de literatura, entendida aqui no sentido de uma prática comprometida com outra coisa que não seja o acto de escrever ele mesmo, a fusão aparece sempre como «uma reflexão sobre o corpo». Di-lo Rodrigo Miragaia, em editorial, confessando uma “motivação inicial”. Por mim, está cumprida. É essa reflexão sobre o corpo que vislumbramos, a título de exemplo, nos trabalhos de Alexandra de Pinho (pp. 137-143) e de Sara Rocio (pp. 144-145). No primeiro caso, reproduções a preto e branco de trabalhos da autora, onde a figura – detalhes de um corpo onde entrevemos constantemente um umbigo - emerge de uma composição de materiais diversos, como tecidos, para dar lugar à palavra, infelizmente nem sempre legível, enquanto revestimento outro do próprio corpo: «começo por vestir o meu corpo, / quase como o único acessório casual e fugaz, / no qual revejo-me na mais original depressão anatómica / no meu umbigo». Voluntariamente ou não, estes trabalhos acabam estabelecendo um elo entre o umbigo, resquício de um começo, de uma ligação ao outro, o tecido enquanto revestimento do corpo e a palavra enquanto revestimento (tecido de outra ordem) do pensamento. A questão da origem, enquanto fusão com um outro, coloca-se assim em evidência, na mesma medida em que se coloca em causa a questão da relação da palavra com o corpo. No caso de Sara Rocio é o poder da ironia que se faz destacar: um corpo humano, posto à venda, embrulhado como se de uma sandes se tratasse. A imagem é fortemente irónica, na medida em que nos envia para um questionamento sobre um certo tipo de relações que se estabelecem entre os corpos, relações de consumo, descartáveis, consumáveis. Podemos dizer que, considerando as variáveis do contexto, é o mesmo tipo de relações que aparecem evidenciadas nas narrativas do nosso quotidiano doméstico. A vida de trabalho, por exemplo, não é outra coisa senão esta exposição do corpo enquanto bem de consumo descartável. No fundo, o que fica em evidência neste trabalho de Sara Rocio é o medo da entrega à fusão, o receio da fusão com o outro, preterida em favor de um embrulho que nos protege das impurezas alheias, do outro - bactéria ameaçadora do nosso confortável individualismo. Daí que me pareçam muito sensíveis e contrastantes as imagens da mesma autora que aparecem nas páginas 76 e 78: um corpo masculino, em negativo, funde-se (por sobre e interposição) com um corpo feminino num cenário de ruína. Talvez exista alguma negatividade nesta forma de olhar as relações, talvez os invólucros com que revestimos a nossa essencialidade, o corpo, não mais sejam que pontos de fuga motivados por um medo inexorável da entrega. Seja como for, que a divagação vai longa, as propostas são várias: poemas, prosas, fotografia, poesia visual, composições gráficas, diálogos interartes, etc. Lancem olho sobre elas que vale a pena.