20.11.07

DO FUNDO DA MESA

O jantar já tinha sido servido. No fundo da mesa,
os pratos amontoavam-se por entre restos ilesos
de comida. Era para ali que nos retirávamos, para
deixar de sentir por momentos, sobre os ombros,
o peso da literatura. A sua incomodidade. Não
seria possível dela extrair, agora, um novo uso?
Nessas alturas, a filosofia consolava-nos do ruído
das conversas, da própria ênfase a que recorríamos
para que, sobre a mesa, o poema ficasse escrito.
Porque o fazíamos? Tornar-se-ia o mundo
mais limpo depois de escrito? Como as mãos
que no rebordo da toalha, enxugávamos?
E no entanto era esse o melhor argumento
de que dispúnhamos: o das mulheres-escritoras
que, noutro século, fiéis ao desvelo dos armários,
reinventavam o mundo no aconchego das cozinhas.

Fernando Guerreiro

Fernando Guerreiro nasceu em 1950 em Lisboa. É professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, poeta e ensaísta. Membro fundador de Quatro Elementos Editores e da Black Sun Editores, assim como colaborador regular de revistas como Última Geração, Intervalo e Telhados de Vidro, traduziu autores como Jean Ray e Baudelaire. Começou a publicar em 1977, em edição de autor, com o volume Livros I/II. Da sua obra poética destaca-se o ciclo iniciado com Teoria da literatura (1997), e que incluiu os livros Outono (1998), Gótico (1999), Grotesco (2000) e Caminhos de Guia (2002).