PERGUNTAS E RESPOSTAS
Há dias a jornalista Maria José Oliveira, do jornal Público, entrou em contacto comigo solicitando um breve depoimento sobre Debaixo do Vulcão, obra-prima de Malcolm Lowry. O depoimento foi hoje publicado no Ípsilon, editado a partir de seis perguntas às quais respondi com gosto e o mais espontaneamente possível. O meu depoimento é apenas um de vários que acompanham um texto bem desenvolvido e pedagógico sobre Lowry e a sua obra. Por curiosidade, na capa do Ípsilon vem Ian Curtis (ou será o actor que recentemente lhe deu corpo?), uma vida que, de certa forma, também aconteceu debaixo do vulcão. Reproduzo a seguir as perguntas e as respostas sem a edição de que foram alvo:
1. Publicou no seu blogue um poema de Lowry traduzido por José Agostinho Baptista. Essa faceta do Lowry não é tão conhecida como a sua obra romanesca. Encontra, na poesia e nos romances, um universo comum?
Encontrei o poema que refere no N.º 3 da revista “Telhados de Vidro” (2004). O universo comum entre esses poemas traduzidos por José Agostinho Baptista e o romance “Debaixo do Vulcão” é o próprio Lowry. Todos os autores têm as suas obsessões, os seus temas predilectos. Tratando-se de um autor onde o elemento autobiográfico é marcante, torna-se claro haver entre os seus poemas e a sua prosa vários pontos em comum. De todos eles, aquele que mais me toca é «o tiquetaque da morte real». Essa ideia de que a morte está presente em tudo, a todo o momento, e de que a consciência dessa presença transforma cada momento numa prova da nossa debilidade, da nossa perdição, é muito poderosa. É uma ideia desoladora e desesperante, mas muito de acordo com a vida ela mesma.
2. Quando leu pela primeira vez "Debaixo do Vulcão"? Voltou a lê-lo? Porquê?
Cheguei a Malcolm Lowry através de “O Anti-Édipo”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que li quando era estudante universitário, portanto antes de 1997. Adquiri “Debaixo do Vulcão” numa feira de velharias, alguns anos depois, com uma dedicatória datada de 19-3-1969. Ainda não estou na fase de reler livros, tenho apenas 32 anos e toda uma história da literatura para ir actualizando. Mas é verdade que gosto de voltar, parcialmente, aos livros que mais me marcaram. “Debaixo do Vulcão” é, certamente, um desses livros. Não é propriamente um livro de reflexões filosóficas profundas ou de aforismos misturados com a narração de uma história, mas possui instantes narrativos aos quais gosto de regressar. Assim como algumas questões-limite para as quais nunca teremos resposta, embora a toda a hora nos ameacem como uma espécie de ferrete. Lembro-me desta: «Que é o homem senão uma alma pequenina dentro de um cadáver?».
3. "Debaixo do Vulcão" é um livro de culto?
Não sei o que é um livro de culto, por isso não posso responder a esta questão. Mas não sou ingénuo a ponto de negar a existência de autores que se tornam apelativos por razões que não estão directamente relacionadas com o que escreveram. Lowry era alcoólatra, tal como o personagem central, o cônsul Geoffrey Firmin. O cenário da acção é o México, terras onde a morte e o riso andam de mãos dadas. Quando Lowry morreu não tinha sequer 50 anos feitos. Não é um autor convencional. Talvez isso seja atractivo para alguns leitores. Pessoalmente, prefiro o que está escrito pelo que está escrito.
4. Para alguns leitores, o livro foi (e continua a ser) um murro no estômago. Também teve essa impressão quando o leu pela primeira vez?
Para quem já sentiu o estômago a contorcer-se de dores depois de levar um murro, a expressão é algo exagerada. Senti apenas que tinha lido um grande livro, um dos melhores livros que alguma vez li. Como já referi, é um livro que nos coloca frente a frente com questões essenciais, fá-lo de uma forma muito crua, sem rodeios, oferecendo-nos um retrato cruel da vida. Algumas dessas questões são a impotência dos homens na inversão do curso da história, a indiferença humana perante o sofrimento alheio, a condenação a uma inexorável solidão, uma desconfiança limite acerca da bondade dos homens, a tal presença da morte em tudo, a ideia de que o passado não tem remedeio. Basicamente, é um livro que nos diz não valer a pena sonhar. Isso é pura crueldade, no sentido que Artaud dava ao termo.
5. Lowry escreveu, no prefácio para a edição francesa da obra, que "Debaixo do Vulcão" era uma "autêntica história de um bêbado". Que comentário lhe suscita esta deifinição?
Diria antes a história dos fantasmas de um bêbado. Vejamos, conta-se que a ideia para o romance terá surgido quando, numa deambulação por várias aldeias e cidades mexicanas, Lowry avistou um índio moribundo a ser roubado na berma de uma estrada. Um moribundo a ser roubado é uma imagem suficientemente forte para inspirar um romance ou para nos colar ao balcão de um bar, pois é a imagem da decadência humana no seu aspecto mais abjecto e indecente. Isto sem censuras morais, pois quem rouba, neste caso, pode até fazê-lo por absoluta necessidade. A questão é que está a roubar um homem em agonia, está a roubar, digamos assim, a morte. Este tipo de imagem, recorrente, por exemplo, em filmes de guerra, é consternadora o suficiente para nos levar a questionar sobre o quão decadente pode ser o ser humano. Depois podemos responder a isso de várias formas, bebendo é apenas uma delas. Volto aos poemas traduzidos por José Agostinho Baptista. Um deles, intitulado “O Último Homem no Dôme”, começa e termina com dois versos bem esclarecedores: «Onde está o sublime bêbado? Será o grande bêbado? / (…) Uma vez que sou o último bêbado: bebo sozinho». “Debaixo do Vulcão” é, pois, a história de um bêbado a beber sozinho, brindando aos seus fantasmas.
6. Lowry é um escritor mal amado em Portugal?
Num país onde se lê tão pouco, apesar das estatísticas improváveis, todos os escritores são mal amados. Malcolm Lowry é apenas um deles.
1. Publicou no seu blogue um poema de Lowry traduzido por José Agostinho Baptista. Essa faceta do Lowry não é tão conhecida como a sua obra romanesca. Encontra, na poesia e nos romances, um universo comum?
Encontrei o poema que refere no N.º 3 da revista “Telhados de Vidro” (2004). O universo comum entre esses poemas traduzidos por José Agostinho Baptista e o romance “Debaixo do Vulcão” é o próprio Lowry. Todos os autores têm as suas obsessões, os seus temas predilectos. Tratando-se de um autor onde o elemento autobiográfico é marcante, torna-se claro haver entre os seus poemas e a sua prosa vários pontos em comum. De todos eles, aquele que mais me toca é «o tiquetaque da morte real». Essa ideia de que a morte está presente em tudo, a todo o momento, e de que a consciência dessa presença transforma cada momento numa prova da nossa debilidade, da nossa perdição, é muito poderosa. É uma ideia desoladora e desesperante, mas muito de acordo com a vida ela mesma.
2. Quando leu pela primeira vez "Debaixo do Vulcão"? Voltou a lê-lo? Porquê?
Cheguei a Malcolm Lowry através de “O Anti-Édipo”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que li quando era estudante universitário, portanto antes de 1997. Adquiri “Debaixo do Vulcão” numa feira de velharias, alguns anos depois, com uma dedicatória datada de 19-3-1969. Ainda não estou na fase de reler livros, tenho apenas 32 anos e toda uma história da literatura para ir actualizando. Mas é verdade que gosto de voltar, parcialmente, aos livros que mais me marcaram. “Debaixo do Vulcão” é, certamente, um desses livros. Não é propriamente um livro de reflexões filosóficas profundas ou de aforismos misturados com a narração de uma história, mas possui instantes narrativos aos quais gosto de regressar. Assim como algumas questões-limite para as quais nunca teremos resposta, embora a toda a hora nos ameacem como uma espécie de ferrete. Lembro-me desta: «Que é o homem senão uma alma pequenina dentro de um cadáver?».
3. "Debaixo do Vulcão" é um livro de culto?
Não sei o que é um livro de culto, por isso não posso responder a esta questão. Mas não sou ingénuo a ponto de negar a existência de autores que se tornam apelativos por razões que não estão directamente relacionadas com o que escreveram. Lowry era alcoólatra, tal como o personagem central, o cônsul Geoffrey Firmin. O cenário da acção é o México, terras onde a morte e o riso andam de mãos dadas. Quando Lowry morreu não tinha sequer 50 anos feitos. Não é um autor convencional. Talvez isso seja atractivo para alguns leitores. Pessoalmente, prefiro o que está escrito pelo que está escrito.
4. Para alguns leitores, o livro foi (e continua a ser) um murro no estômago. Também teve essa impressão quando o leu pela primeira vez?
Para quem já sentiu o estômago a contorcer-se de dores depois de levar um murro, a expressão é algo exagerada. Senti apenas que tinha lido um grande livro, um dos melhores livros que alguma vez li. Como já referi, é um livro que nos coloca frente a frente com questões essenciais, fá-lo de uma forma muito crua, sem rodeios, oferecendo-nos um retrato cruel da vida. Algumas dessas questões são a impotência dos homens na inversão do curso da história, a indiferença humana perante o sofrimento alheio, a condenação a uma inexorável solidão, uma desconfiança limite acerca da bondade dos homens, a tal presença da morte em tudo, a ideia de que o passado não tem remedeio. Basicamente, é um livro que nos diz não valer a pena sonhar. Isso é pura crueldade, no sentido que Artaud dava ao termo.
5. Lowry escreveu, no prefácio para a edição francesa da obra, que "Debaixo do Vulcão" era uma "autêntica história de um bêbado". Que comentário lhe suscita esta deifinição?
Diria antes a história dos fantasmas de um bêbado. Vejamos, conta-se que a ideia para o romance terá surgido quando, numa deambulação por várias aldeias e cidades mexicanas, Lowry avistou um índio moribundo a ser roubado na berma de uma estrada. Um moribundo a ser roubado é uma imagem suficientemente forte para inspirar um romance ou para nos colar ao balcão de um bar, pois é a imagem da decadência humana no seu aspecto mais abjecto e indecente. Isto sem censuras morais, pois quem rouba, neste caso, pode até fazê-lo por absoluta necessidade. A questão é que está a roubar um homem em agonia, está a roubar, digamos assim, a morte. Este tipo de imagem, recorrente, por exemplo, em filmes de guerra, é consternadora o suficiente para nos levar a questionar sobre o quão decadente pode ser o ser humano. Depois podemos responder a isso de várias formas, bebendo é apenas uma delas. Volto aos poemas traduzidos por José Agostinho Baptista. Um deles, intitulado “O Último Homem no Dôme”, começa e termina com dois versos bem esclarecedores: «Onde está o sublime bêbado? Será o grande bêbado? / (…) Uma vez que sou o último bêbado: bebo sozinho». “Debaixo do Vulcão” é, pois, a história de um bêbado a beber sozinho, brindando aos seus fantasmas.
6. Lowry é um escritor mal amado em Portugal?
Num país onde se lê tão pouco, apesar das estatísticas improváveis, todos os escritores são mal amados. Malcolm Lowry é apenas um deles.
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