19.11.07

CHUVA

William Edward Bloomfield Starkweather


Fico em casa sempre que a chuva chega. Fecho-me a escutar as bátegas nos vidros, olho a água escorrendo sobre a superfície das janelas, meto a mão de fora, por vezes, para sentir que é real. Deito-me a pensar na chuva, escrevo o sangue que há-de alimentar sanguessugas inverosímeis. Mas quando a água escorre sobre a superfície das janelas eu fico sem saber qual seja a superfície das janelas. Então ponho-me a pensar no que possa ser a superfície de alguma coisa. Sempre que a chuva chega, fico em casa a pensar no que possa ser a superfície de alguma coisa. E penso que a superfície de uma coisa é tudo o que uma coisa é, que nada mais há para lá da superfície. O que há, por vezes, é alguém a meter o braço de fora para sentir que é real. O que há é gente que não se contenta com a superfície e então escava, mete o braço de fora, sobe e desce, arromba, desbrava caminho, à procura do que possa estar para lá da superfície. Para lá da superfície há sempre uma superfície. Nunca compreendi a razão que leva tanta gente a procurar algo para lá da superfície. Esta tendência de andarmos para lá dos nossos passos, de imprimirmos constantemente o nosso corpo nas sombras, transformando-o numa espécie de fantasma carnívoro, é algo que se me apresenta com indecifrável estranheza. Por que razão não nos contentamos com a superfície das coisas? Não nos chega sabermos onde metemos o pé, temos sempre de saber o que se esconde por baixo do terreno onde assentamos o pé. Julgo haver muita melancolia nesta ansiedade, a mesma que nos reprime junto do desconhecido. Evitar o desconhecido é viver com a ilusão de que se pode conhecer alguma coisa, como, por exemplo, os elementos que compõem o nosso território, o nosso casulo. Evitar o desconhecido é partir do princípio de que existe algo que se conhece, como se isso fosse possível para lá da fé que colocamos nas relações com os outros. Evitar o desconhecido é viver enganado. Quando fico em casa a olhar a chuva que escorre nos vidros, concluo que nem os vidros nem a chuva se conhecem, apenas por acidente se tocam, apenas por acidente se estabelece este contacto que nos permite, a mim, à chuva e aos vidros, ficarmos dentro de um texto que, um dia destes, há-de alimentar sanguessugas inverosímeis. O mesmo se passa com todos os elementos que compõem o meu casulo. Observo esses elementos e penso como apenas à superfície nos conhecemos, à superfície de um olhar mais ou menos desatento, mas que não recusa aceitar haver entre nós uma vida que se partilha pela simples presença. Há objectos assim, que nos dizem haver vida na simples presença. São como retratos que nos enviam para situações, momentos, traumas, ocasiões que guardamos na memória. Talvez a memória seja o que está para lá da superfície, isto quando não a trazemos à superfície do corpo quando olhamos, por exemplo, um desses elementos que compõem o nosso casulo. Talvez a chuva seja a memória a vir à superfície do corpo, talvez o corpo seja como um vidro onde a água escorre. Este meu corpo de ficar em casa a pensar, este meu corpo de ficar parado a pensar, é um vidro onde escorrem memórias como se fossem a chuva chegando-se por acaso à pele. As memórias que escorrem sobre o meu corpo não são nada que o corpo não saiba já, pois por ele passaram como quem por ele ficou. São memórias de uma chuva insuficiente, uma chuva que vindo de tempos a tempos não chega para limpar tudo o que está sujo. Porque a sujidade resiste sempre ao detergente. É essa a razão que nos obriga a uma higiene diária, é essa a razão que nos obriga a uma limpeza constante dos recantos onde, rapidamente, o lixo se acumulará. Nada resiste ao lixo, o lixo cresce, acumula-se como uma praga, como um vírus. E nada há que o desfaça para sempre. Por isso fico em casa, quando a chuva vem, a pensar e a escrever o sangue que um dia alimentará as sanguessugas. Mal saberão elas que o meu lixo será o seu alimento. Mal saberão elas que é de lixo que se alimentam quando aqui vêm beber do meu sangue.