ENCONTRAR A MORADA
O mais alto momento da minha vida passou-se debaixo da terra, nas grutas de Mira de Aire. Havia lá um barquito de madeira onde, a meio de uma excursão, resolvi esconder-me. Fiquei sozinho na gruta, desaparecido, deixando preocupadas as pessoas que estavam a tomar conta de mim. É um momento alto da vida sabermos que há pessoas que tomam conta de nós que podem ficar preocupadas com o nosso desaparecimento, mas mais alto ainda é sentirmo-nos, posteriormente, achados e constatarmos no alívio dos outros o transtorno que lhes causou a nossa ausência. Há pessoas que desaparecem só para se sentirem desejadas, pessoas que se tentam matar como quem aposta um amor incerto, há pessoas que julgam revigorar uma paixão indo uns tempos para fora, dando um tempo, partindo com a certeza de um regresso. O momento mais alto da minha vida foi ter percebido esse fenómeno a vários metros de profundidade. Ter ficado para ali sozinho, debaixo da terra, abriu-me algumas perspectivas sobre o que possa ser viver sozinho debaixo da terra. Nada desagradável, acreditem. Só nos irrita o eco, um eco tão sensível que até nos devolve a respiração. Debaixo da terra a respiração é como um vapor que nos sai do corpo, uma espécie de nevoeiro matinal. Posso acrescentar que o facto de ter passado umas horas longe de tudo e de todos debaixo da terra neutralizou-me certo tipo de ambições que observo serem muito comuns na maioria das pessoas. Por exemplo, a ambição de uma companhia. Só quem nunca esteve verdadeiramente sozinho pode ambicionar uma companhia como se uma companhia fosse a solução de todos os problemas que um homem transporta dentro de si. Estar em companhia é estar à mão da paranóia, é murmurar a preguiça para que ela não se note, é disfarçar as impurezas com promessas desmaiadas. Sou dos que partem do princípio que todos os homens são impuros, embora uns lavem as mãos com mais cuidado que outros. Sou dos que não acredita senão na transformação interior, assim como quem passa por uma experiência alta a vários metros de profundidade. Seguro um ninho sobre as mãos e penso no que sentirão os fantasmas dos pássaros quando me observam a segurar um ninho nas mãos. É provável que pensem, se pensar for próprio dos fantasmas dos pássaros, que lhes seguro a liberdade. Mas a liberdade têm eles nas asas, a liberdade não é o que nos protege dos outros, é antes o que nos torna nucleares entre os outros, a liberdade dos pássaros não é o ninho onde se protegem, é as asas com que migram. Por isso detesto ninhos, prefiro ficar escondido num barquito de madeira sonhando com grupos de pessoas preocupadas à minha procura. Um homem tem que ter sonhos, não se vive sem sonhos. Apenas se existe. O meu sonho é esse: que um dia alguém ande por aí preocupado à minha procura. Por isso mergulho tanto nas implosões, como um estilhaço liquefeito, à espera de sentir no ar as chamas de quem murmura a dor da nossa ausência. Confesso que não estou desapiedado de todo. Tenho até alguma sorte. De vez em quando rebentam-me beijos no rosto, como se fossem gorjetas, é certo, mas sempre mais vale. Se um tipo se predispõe a cantar na rua é bom que façam cair a gorja. Porém não engano a minha morada: é de breu, simples como uma porta que range, sempre a deixar passar para dentro e para fora a sombra dos ecos, os uivos sombrios, aquela coisa de se dizer como se a vida fosse isso «tudo bem? sim tudo bem». A minha morada, já sabem, é a muitos metros de profundidade dentro de um barquito de madeira. E confesso não estar muito interessado em remar pelos outros. Haja apenas quem me procure com preocupação. Outra coisa não tenho feito por quem amo verdadeiramente.
4 Comments:
pois :)
...e eu procuro-te. Não com preocupação mas com um interesse genuíno por aquilo que escreves.É quase diária esta procura e nunca me arrependo. Tens a capacidade de agradavelmente me surpreender e isso não é vulgar.
Sabes que a gata Lua faz o mesmo que tu fizestes? Pois é, volta e meia esconde-se nalgum buraco ou armário da casa e eu não dou por nada, depois ando a chamá-la durante imenso tempo e à procura onde está, ela não faz barulho nem responde, e eu fico aflita a pensar que fugiu porta fora até que depois aparece e eu fico um misto de feliz porque a vejo e irritada porque se escondeu!
Maria João
nelson, pois...
sinedoque, muito agradecido. aparece sempre.
etanol, essa gata é muito esperta.
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