ACORDO ORTOGRÁFICO
Na quinta-feira passada, fizeram-me chegar a imagem reproduzida neste post e uma petição contra o novo acordo ortográfico. Aparentemente os dois e-mails nada têm que ver um com o outro, até porque os remetentes são pessoas distintas. O chocante é que, por mais que me esforce, não consigo deixar de vislumbrar entre ambos uma pavorosa relação.
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Considero-me bastante flexível no uso que faço da língua portuguesa, sou dos que partem do princípio ser a língua um organismo vivo, sujeito a transformações, em relação interdependente com a prática corrente da mesma. Sucede que atingimos um estado de tal desprezo pela nossa língua, que nos arriscamos, se nada for feito em contrário, a deixar de ter um código que sustente a comunicabilidade com um mínimo de evidência, sentido e entendimento.
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Todos os dias deparo-me com situações em que, por desrespeito pelas mais básicas leis desse código que nos possibilita o exercício da comunicação, as pessoas não se entendem, geram equívocos desnecessários, controvérsias desgastantes, criam conflitos, por vezes, com consequências gravosas. E tudo seria evitável se soubéssemos fazer-nos entender em português inteligível, se, antes de acordos ortográficos, nos preocupássemos em ensinar com alguma exigência a língua portuguesa.
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Esta exigência parece ser inexequível, pois a língua portuguesa tem vindo a transmutar-se num corpo estranho e, por vezes, indecifrável. Não é preciso sermos professores para nos darmos conta deste terrível facto, basta estarmos atentos ao mundo à nossa volta. Por mero acaso, encontro na antologia Contos de Bolso um miniconto intitulado Pedaços de língua através das gerações que pode constituir uma bela metáfora do espectáculo a que vamos assistindo. O conto é de um autor brasileiro que assina Índigo (n. 1971):
Certa vez, no meio da noite, minha mãe mordeu sua própria língua, tirou um naco e o engoliu. Todos na família acharam aquilo muito estranho.
Passam-se os anos e ontem à noite acordei sentindo uma dor insuportável. Agora um naco da minha língua está nesse potinho de requeijão.
Graças ao histórico familiar, sei que não preciso me desesperar. A gente fala esquisito durante um par de dias, mas depois acostuma. Isso é o mais assustador, a gente simplesmente vai se acostumando.
Certa vez, no meio da noite, minha mãe mordeu sua própria língua, tirou um naco e o engoliu. Todos na família acharam aquilo muito estranho.
Passam-se os anos e ontem à noite acordei sentindo uma dor insuportável. Agora um naco da minha língua está nesse potinho de requeijão.
Graças ao histórico familiar, sei que não preciso me desesperar. A gente fala esquisito durante um par de dias, mas depois acostuma. Isso é o mais assustador, a gente simplesmente vai se acostumando.
2 Comments:
é mesmo a metáfora exata!
abraços,
silvia
também me pareceu
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