THE GREEN RAY
Tacita Dean (n. 1965) é uma artista britânica cujo trabalho vem sendo divulgado com alguma frequência em território luso. Especialmente reconhecida pelas suas produções em vídeo, nomeadamente depois da nomeação para o Prémio Turner com Disappearance at Sea (1996), tem no mar um tema recorrente. Na imagem ao alto reproduz-se uma imagem de The Green Ray (2001), onde filmou um pôr-do-sol em tempo real captando esse extraordinário fenómeno natural que foi objecto de uma obra de Júlio Verne. Ao longo dos tempos a forma como os artistas têm abordado o mar é muito diversa. Símbolo de força e de mistério, de movimento e de renovação, o mar é, por excelência, o lugar da incerteza. Quem vai ao mar sabe que pode apenas contar com a sorte, lança-se nas mãos do destino, entrega-se ao que Deus quiser. Olhamos para o mar sempre com justificada admiração, pois no mar vislumbramos tanto a prova da nossa debilidade como o princípio de uma fé alicerçada no temor causado por nos sabermos assim tão frágeis, ínfimos e insignificantes. Ninguém sabe o que encontrará para lá do mar, ninguém sabe o que encontrará no próprio mar, sabe apenas que encontrará uma força indómita e inexorável. Com a maior das facilidades, o mar tudo arrasa e engole. No entanto, paradoxalmente, olhamos também para o mar com algum embevecimento. Também lhe vislumbramos uma beleza inaudita, uma espécie de sublimidade que jamais obra humana alguma poderá partilhar. O mar tem esse lado terrífico e belo que os antigos atribuíam a várias divindades, faz-nos crer na beleza do terror e, por alguma razão, atrai-nos para mistérios que, de outro modo, nos seriam repelentes e indesejáveis. Mas o mar é uma tentação, é um canto irresistível que nos ilude os sentidos, usurpa a razão, leva à loucura. É possível que seja este o último passo do nosso abismo: sentirmo-nos atraídos pelo que tememos ao extremo. Mas em The Green Ray há um outro fenómeno presente, um fenómeno natural que, filmado num horizonte marítimo, chega a anular a presença do próprio mar. Trata-se de um fenómeno luminoso, algo contrastante com o silêncio e a bruma que caracterizam o fundo dos oceanos. Este fenómeno luminoso recolhe sobre si uma densidade metafórica impressionante, na medida em que é o último resquício da luz do dia antes de cairmos na treva da noite. A tal dinâmica que simbolicamente atribuímos ao mar, símbolo da renovação, torna-se presente de uma outra forma, por um outro prisma ou com um outro alcance. O que Tacita Dean faz nesse vídeo é captar um instante fugidio, a presença efémera da luz no momento de supressão do dia, aquele último instante de esperança antes de sobre tudo se abater a escuridão. A artista, ao ir em busca deste instante e logrando, de certo modo, a captura do mesmo, metaforiza a sua própria condição. Duvido que possa ser outra a condição do artista, senão essa de captar instantes que, cada um à sua maneira, nos mostrem um outro lado, nos ofereçam uma alternativa, nos ajudem a respirar melhor. Não se trata de chamar os pobres mortais à sublime luz divina, até porque a gangrena da noite, ao contrário do sopro de Deus, é um dado adquirido e inevitável. Trata-se antes de, antes que seja tarde, fazer surdir da treva um pouco de luz, roubar à treva esse pouco que a desengana, fazer da própria busca a assinatura de uma existência que será sempre, para todos os efeitos, frugal, absurda, mísera e desimportante.
1 Comments:
Este texto, Henrique, fez-me regressar a um dos mais amados poemas da minha vida:
"Tu perguntas, e eu não sei,
eu também não sei o que é o mar".
(Eugénio de Andrade, "Mar, mar e mar")
Abraço.
> Roteia
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