A ORGIA
Charles Doudelet, Orgy, 1902.
Há um descaramento patente no modo como lidamos com a amizade quando ela se imiscui nos assuntos profissionais. O ditado manda que: amigos, amigos, negócios à parte. No entanto, o “à parte” é frequente e convenientemente esquecido em prol do que eu apelidaria de gestão das inimizades (outra forma de gestão de conflitos). Sabemos que não está tanto em causa o reforço de uma amizade como, para mau grado das nossas paixões, a táctica segundo a qual evitaremos um inimigo. É que facilmente um amigo se transforma em inimigo quando lhe dizemos não, quando lhe batemos com a porta na cara, quando puxamos da sinceridade e, não enjeitando o nosso lado honesto e autêntico, lhe dizemos com toda a clareza que a amizade deveria pressupor: para isto não serves, não tenho dinheiro para ti, não gosto, é feio, podes fazer melhor. É por estas e por outras que o amigo de seu amigo, geralmente, não passa de um gestor de inimizades. Na verdade, ele apenas evita inimigos distribuindo elogios, preparando a cama, engraxando as botas, pousando a palma da mão sobre o costado daqueles que, não querendo ter por inimigos, promove como amigos. Desenganem-se os leitores de Aristóteles que ainda julguem ser a amizade uma forma de virtude onde se manifeste reciprocidade entre justiça, concórdia, benevolência e nobreza. Como a nobreza há muito deu lugar ao arrivismo burguês, restam-nos a benevolência, a concórdia e a justiça. A justiça, como sabeis, é hoje o preço de um bom advogado. Justos ou injustos não serão os mais poderosos, mas, para efeitos práticos, são sempre os menos preguiçosos na argumentação da sua justeza. Onde o valor é determinado pela qualidade do níquel, a justiça passa a ser apenas uma questão de sustentabilidade, quase sempre remetida para os prazos que prescrevem o grau de injustiça de uma acção. Veja-se como o tempo tudo cura e como o esquecimento tudo aquece. Veja-se como, com o tempo, os injustos se tornam justos, as bestas se tornam bestiais, inimigos acérrimos aparecem de braço dado em negócios frutuosos. Esta maravilhosa conspurcação em que vivemos não pode senão ser explicada por uma benevolência cega que tem na sua origem a apatia e a subserviência. Somos muito apáticos e subservientes para com aqueles que nos agridem todos os dias, para com aqueles que nos mentem, exploram, iludem, roubam, atraiçoam. Somos tão apáticos e subservientes que nos deixamos ser benevolentes quando, na verdade, deveríamos ser implacáveis. Esta mania de perdoar a quem agride, de dar a outra face, desemboca sempre no mesmo: a viciação da amizade. Por isso julgo que, sem falsas modéstias ou idiota gabarolice, nos resta a autenticidade enquanto garante da amizade. Assim como assim, sabemos que ao aguentar a nossa autenticidade um amigo apenas reforça a admiração que lhe devemos. Sem autenticidade não pode haver amizade. Poderá haver apenas uma amizade artificial, mas essa não passa de mero artifício, por certo muito conveniente e lucrativo. Mas nada de falsos pudores. A amizade não premeia ninguém, a amizade autêntica apenas dá trabalho e dores de cabeça. Contra tais dores, sugiro a aspirina de um jogo de anca que vos permita, chamando amigo a qualquer conhecido, ter com todos um tipo de relação que não vos cause o transtorno de serem autênticos. Voltamos ao elogio. Sejam persistentes no elogio, mas não evitem uma certa discrição. Sejam, digamos assim, coerentes no elogio. E não desanimem se o lucro não for imediato. Mais tarde ou mais cedo o elogio ricocheteará, chegar-vos-á às mãos como um bálsamo para a paciência, fará valer o esforço de uma aproximação lenta, desabará sobre a consciência como… Não. Apenas desabaria sobre a consciência se ainda houvesse consciência. Como já não há consciência, o troco para o vosso pagamento assumirá apenas a forma de uma transacção, de uma permuta, de uma espécie de favor retributivo. O imposto a pagar será sempre o mesmo: a admiração de uns, a aversão de outros, o respeito de alguns, o rancor de outros tantos, isto tudo distribuído equitativamente e, a seu tempo, alternadamente. Mas nunca o amor. O amor é para os pobres, para os desamparados, para os mendigos.
Há um descaramento patente no modo como lidamos com a amizade quando ela se imiscui nos assuntos profissionais. O ditado manda que: amigos, amigos, negócios à parte. No entanto, o “à parte” é frequente e convenientemente esquecido em prol do que eu apelidaria de gestão das inimizades (outra forma de gestão de conflitos). Sabemos que não está tanto em causa o reforço de uma amizade como, para mau grado das nossas paixões, a táctica segundo a qual evitaremos um inimigo. É que facilmente um amigo se transforma em inimigo quando lhe dizemos não, quando lhe batemos com a porta na cara, quando puxamos da sinceridade e, não enjeitando o nosso lado honesto e autêntico, lhe dizemos com toda a clareza que a amizade deveria pressupor: para isto não serves, não tenho dinheiro para ti, não gosto, é feio, podes fazer melhor. É por estas e por outras que o amigo de seu amigo, geralmente, não passa de um gestor de inimizades. Na verdade, ele apenas evita inimigos distribuindo elogios, preparando a cama, engraxando as botas, pousando a palma da mão sobre o costado daqueles que, não querendo ter por inimigos, promove como amigos. Desenganem-se os leitores de Aristóteles que ainda julguem ser a amizade uma forma de virtude onde se manifeste reciprocidade entre justiça, concórdia, benevolência e nobreza. Como a nobreza há muito deu lugar ao arrivismo burguês, restam-nos a benevolência, a concórdia e a justiça. A justiça, como sabeis, é hoje o preço de um bom advogado. Justos ou injustos não serão os mais poderosos, mas, para efeitos práticos, são sempre os menos preguiçosos na argumentação da sua justeza. Onde o valor é determinado pela qualidade do níquel, a justiça passa a ser apenas uma questão de sustentabilidade, quase sempre remetida para os prazos que prescrevem o grau de injustiça de uma acção. Veja-se como o tempo tudo cura e como o esquecimento tudo aquece. Veja-se como, com o tempo, os injustos se tornam justos, as bestas se tornam bestiais, inimigos acérrimos aparecem de braço dado em negócios frutuosos. Esta maravilhosa conspurcação em que vivemos não pode senão ser explicada por uma benevolência cega que tem na sua origem a apatia e a subserviência. Somos muito apáticos e subservientes para com aqueles que nos agridem todos os dias, para com aqueles que nos mentem, exploram, iludem, roubam, atraiçoam. Somos tão apáticos e subservientes que nos deixamos ser benevolentes quando, na verdade, deveríamos ser implacáveis. Esta mania de perdoar a quem agride, de dar a outra face, desemboca sempre no mesmo: a viciação da amizade. Por isso julgo que, sem falsas modéstias ou idiota gabarolice, nos resta a autenticidade enquanto garante da amizade. Assim como assim, sabemos que ao aguentar a nossa autenticidade um amigo apenas reforça a admiração que lhe devemos. Sem autenticidade não pode haver amizade. Poderá haver apenas uma amizade artificial, mas essa não passa de mero artifício, por certo muito conveniente e lucrativo. Mas nada de falsos pudores. A amizade não premeia ninguém, a amizade autêntica apenas dá trabalho e dores de cabeça. Contra tais dores, sugiro a aspirina de um jogo de anca que vos permita, chamando amigo a qualquer conhecido, ter com todos um tipo de relação que não vos cause o transtorno de serem autênticos. Voltamos ao elogio. Sejam persistentes no elogio, mas não evitem uma certa discrição. Sejam, digamos assim, coerentes no elogio. E não desanimem se o lucro não for imediato. Mais tarde ou mais cedo o elogio ricocheteará, chegar-vos-á às mãos como um bálsamo para a paciência, fará valer o esforço de uma aproximação lenta, desabará sobre a consciência como… Não. Apenas desabaria sobre a consciência se ainda houvesse consciência. Como já não há consciência, o troco para o vosso pagamento assumirá apenas a forma de uma transacção, de uma permuta, de uma espécie de favor retributivo. O imposto a pagar será sempre o mesmo: a admiração de uns, a aversão de outros, o respeito de alguns, o rancor de outros tantos, isto tudo distribuído equitativamente e, a seu tempo, alternadamente. Mas nunca o amor. O amor é para os pobres, para os desamparados, para os mendigos.
6 Comments:
para os parvos?
discrição?
obrigado, purpurina.
A amizade autêntica dá trabalho e dores de cabeça: pois é, mas eu prefiro assim, porque respeito muito mais a frontalidade e a autenticidade, mas se calhar sou um bocado parva, é pegar ou largar. E com o tempo aprecebemonos que não é possível ser amigo de toda a gente, nem toda a gente é nossa amiga - temos de escolher, também nos enganam ou enganamo-nos, somos apenas humanos. Descrição? Em certas situações evita dores de cabeça, por uma questão de tacto e não nos querermos chatear, não sei se é preguiça, talvez calejamento.
Maria João
"a justiça é hoje o preço de um bom advogado" - a frase do século!
henrique, por isso é tão raro encontrar um amigo ou encontrar um amor.
Mas é possível. Sem desistir.
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