4.2.08

BLIND IN THE VALLEY OF SUICIDES


Conheço mal o trabalho do americano Robert Smithson (1938-1973). No entanto, ao pesquisar sobre o autor descobri alguns trabalhos anteriores às suas composições no domínio da land art. No artigo da Wikipédia diz-se que os seus primeiros trabalhos consistiam em colagens influenciadas por desenhos homoeróticos, ficção científica e a primeira Pop Art. Blind In The Valley Of Suicides (ao alto), de 1962, parece encaixar nessa descrição. Observamos o desenho e vemos uma figura aparentemente humana fundida na figura de uma árvore. Os pés adquirem a forma de raízes, ao passo que os braços e as mãos são troncos de várias ramificações. Dos troncos, guarnecidos com folhas, escorrem uns fios líquidos que cada qual interpretará como bem entender, mas que não deixam de imprimir ao objecto representado uma espécie de desfalecimento semelhante ao de uma vela a liquescer. O título da obra imprime-lhe um carácter fortemente metafórico. A associação de um tronco de uma árvore ao suicídio é recorrente. Já a cegueira nem por isso. Por curiosidade, fui ao Dicionário dos Símbolos procurar uma entrada para cegueira. Encontrei uma entrada para o termo cego: «Ser cego significa, para uns, ignorar a realidade das coisas, negar a evidência e, portanto, ser louco, lunático, irresponsável. Para outros, o cego é aquele que ignora as aparências enganosas do mundo e, graças a isso, tem o privilégio de conhecer a sua realidade secreta, profunda, interdita ao comum dos mortais. Participa do divino, é o inspirado, o poeta, o taumaturgo, o Vidente Depois de ler isto voltei a olhar o desenho de Robert Smithson. Já não vi uma mera árvore, vi toda uma genealogia. Curioso que, sendo o tema tão soturno, a árvore possua folhas, folhas que aparecem na ponta de ramos bifurcados, quase como se fossem assas, asas de anjos ou de pássaros. Não fossem as raízes, diria que a árvore conseguiria levantar voo. A cabeça bem olha para cima, o tronco está inclinado para trás como se os ramos o estivessem a puxar para cima. Mas as raízes não o permitem, as raízes prendem o tronco à terra. Subitamente descubro neste desenho, neste desenho tão simples, uma representação de todo o gesto criativo. O homem que cria é um homem que se mata. É um suicida social e um suicida figurado, quando não se torna um suicida de corpo inteiro. É um suicida social porque vive permanentemente incompatibilizado com o mundo, um mundo que nunca está preparado para aceitar o seu degredo, na mesma medida que o artista não está preparado para aceitar indiferentemente as úlceras do mundo à sua volta. O mundo odeia os actos desviantes dos artistas, a postura fracturante dos inconformados. Não me refiro aos actos extravagantes, sempre coleccionáveis e passíveis de funcionar, perversamente, enquanto factores de promoção junto daqueles para quem até a dor é comercializável. Nem há nada de romântico no que afirmo, muito mais sendo eu parte integrante de um país onde nascer-se artista é nascer-se para a fome. O suicida figurado, quando não se transforma - ou antes de se transformar - num suicida de corpo feito, é o artista que se mata, de facto, na obra que cria, que se dá e se entrega de tal modo à sua criação que acaba por desfalecer nela, como a desfalecer está a figura desenhada por Robert Smithson. Mas há algo de irónico nisto tudo. Como disse, conheço mal a obra de Smithson. Não sei se ele foi um desses artistas que desaparecem nas suas obras, fundindo-se com elas de tal modo que se torna impossível distinguir o criador da criatura. Desconfio que não tenha sido propriamente um suicidado da sociedade. Foi, pelo menos, um artista que morreu enquanto criava, nomeadamente num acidente de aviação enquanto sobrevoava locais no Texas tendo em vista a construção de uma das suas peças de land art. É no que dá escapar às raízes que nos prendem à terra.

1 Comments:

At 10:46 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Há algum tempo encontrei um livro seu na Almedina do Saldanha. Reparei agradavelmente que até tem algum jeito para o desenho. Não gostaria de explorar essa sua faceta no blog? :)

 

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