3.2.08

CAFÉ


  1. E assim chego
    - colete, calça e paletó.

    E sento-me, feliz da vida
    na esplanada quase deserta.

    Espero os ventos do sul
    os musgos do norte
    o sol de um pouco à esquerda do sudeste.

    Talvez relinche como uma estrela fogosa
    talvez chame o criado e fique mudo.

    Talvez, quem sabe, me espante um bom bocado
    chapéu de feltro cinzento na cabeça
    dócil e omnipresente.

    Que pergunta, interrogo-me perplexo
    fiz a mim mesmo há pedacinho?

  2. As árvores
    Não as que vi em criança
    umas de roda do luar espelhado
    no pequeno tanque
    outras em dia de mortos
    aparecendo desaparecendo
    como presenças incertas
    Não as árvores de repente ternas
    como sementes
    remotas como pedras

    Mas as que gravitam em torno de nós
    aflitas

    silenciosas como um pensamento.

  3. Nas arribas do Cabo Espichel
    aí pela manhã
    um tipo pensativo põe-se a recordar
    os tempos dilectos da juventude
    quando trabalhava com o velho Indalécio
    o carpinteiro tisnado de camisas de algodão
    E ambos galhofavam serenamente
    um em frente do outro, de pés em cima da mesa

    na sala traseira da vetusta lojeca
    atestada de móveis como dantes se faziam
    perto do farol do arquipélago das Berlengas.

    “Quando o vento acalmava, rapariga
    a morte e a doença à porta não chegavam
    à porta não chegavam, digo-te eu
    minha garota, minha garota bela!”


    Indalécio, rei das cadeiras e das mesas
    o das camisas baratas de algodão...

    Colete, calça e paletó
    e às vezes uma rosa na mão direita
    - mas não como se fôsse um troféu.

    E tudo sem palavras, sem um gesto
    sem sequer uma canção que vem de longe
    que vem de muito longe e ressoa.


    Nicolau Saião

    in “Escrita e o seu contrário”