CAFÉ
- E assim chego
- colete, calça e paletó.
E sento-me, feliz da vida
na esplanada quase deserta.
Espero os ventos do sul
os musgos do norte
o sol de um pouco à esquerda do sudeste.
Talvez relinche como uma estrela fogosa
talvez chame o criado e fique mudo.
Talvez, quem sabe, me espante um bom bocado
chapéu de feltro cinzento na cabeça
dócil e omnipresente.
Que pergunta, interrogo-me perplexo
fiz a mim mesmo há pedacinho? - As árvores
Não as que vi em criança
umas de roda do luar espelhado
no pequeno tanque
outras em dia de mortos
aparecendo desaparecendo
como presenças incertas
Não as árvores de repente ternas
como sementes
remotas como pedras
Mas as que gravitam em torno de nós
aflitas
silenciosas como um pensamento. - Nas arribas do Cabo Espichel
aí pela manhã
um tipo pensativo põe-se a recordar
os tempos dilectos da juventude
quando trabalhava com o velho Indalécio
o carpinteiro tisnado de camisas de algodão
E ambos galhofavam serenamente
um em frente do outro, de pés em cima da mesa
na sala traseira da vetusta lojeca
atestada de móveis como dantes se faziam
perto do farol do arquipélago das Berlengas.
“Quando o vento acalmava, rapariga
a morte e a doença à porta não chegavam
à porta não chegavam, digo-te eu
minha garota, minha garota bela!”
Indalécio, rei das cadeiras e das mesas
o das camisas baratas de algodão...
Colete, calça e paletó
e às vezes uma rosa na mão direita
- mas não como se fôsse um troféu.
E tudo sem palavras, sem um gesto
sem sequer uma canção que vem de longe
que vem de muito longe e ressoa.
Nicolau Saião
in “Escrita e o seu contrário”
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