28.3.08

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #28b

UM RESTO A CONTA-GOTAS

(CONTINUAÇÃO)


por uns segundos passei pelas brasas
engomando sonhos teus e acordei
com os cabelos mergulhados na cinza
das beatas no cinzeiro charco
onde bóiam paus de fósforos e

o sumário da minha vida
é a morte

como desejo não acordar mais
neste aglomerado de dias sem cura

é-me igual ao litro que venha a doença
da esperança de máscara ferida
se morrem os meus braços sem os teus

recito uma lágrima dum sonho
e sigo pelas ruas da cidade
de passos com destino padrasto
e tudo e todos parecem estar em saldo

aos pés da espuma feita colchão danço
agora o tango sozinho
e esta graciosidade como a vida
não é rota para viagem sem par

tropeço em restos de papelões
escondendo nos passeios da cidade corpos
apodrecendo abandonados pelo destino
e pelos miseráveis governantes
indiferentes à espinha de fome
e aos ossos do desespero de seres
que mesmo nunca tendo lido
a morte a crédito de Céline
são homens e mulheres alguns
nunca se conheceram crianças
no espelho desabrigado de beleza

sem Spartacus nem sopa os pobres
já nem cabeça têm para se revoltarem
ou cuspirem o bolor
que o tutano da sua vida ganha

sem terra sem rua sem mesmo um nada
não podem mijar no urinol do Duchamp
porque só conhecem a sombra
da árvore no taipal da obra e
o biombo automóvel onde

ao redor ratazanas reconhecem
o cheiro do desamparo a arder
e em breve mais um corpo caído no ruído
do alcatrão urbano prato forte
por ninguém terem nem despedidas
para o recordar algum tempo mais

a revolta gaga dos sem trabalho
e sem versos enferrujando
na perpétua armadilha
de saberem e terem a vida a crédito
para tal basta possuírem o impossível

um minuto para pagar um dia

um raio de sol bailando num rosto
uma palavra com raiz criando pontes
entre o cérebro e o coração
e à mão um pão e um corpo

numa ruela da Cova da Moura
as balas arrumam fardas nos guarda-fatos
ao som de mornas cheirosas a torresmos

um machado racha-me a cabeça ao meio
e a minha língua saltita na mesa
lambendo os pingos de sangue e a cinza
dos meus cigarros que lembram corpos
caídos ao longe num resto de rua no Iraque
depois de um carro armadilhado ter explodido
junto a uma paragem de autocarro
onde já ninguém se lembra da imagem

um vaso com flores à porta de casa

e vão pelos ares comboios alianças e livros
de cheques salpicados com o sangue
dos pedaços de carne voando
no espaço aéreo das pombas
num estilo Furia dell Baus

são os primeiros sinais do espectáculo
de novo trazido à cena
em nova encenação islâmica

o resto da minha vida anda
numa bola de sabão perdida numa galáxia
numa bala à deriva no Cazaquistão
num fio da corda dum enforcado no Irão
na lâmina mortal dum motim
numa cadeia em São Paulo e em letras
de canções que sei de cor

e se deus me quiser castigar
então vai ter que penar
para o inferno não se pode mandar
o que já lá está


o máximo que desejo esta noite
é não me lembrar de ti
duma mesa posta sem comida
ou do relógio com os ponteiros parados
por não haver dinheiro para comprar pilhas
mas é impossível meu amor

quando chegaste com a cicatriz do sonho
e a alma remendada além dos corantes
e conservantes para o tingimento
das roupas dos ricos cuspiste
não me toques puta europa

o outro teu colega têxtil enlouqueceu
ao aproximar a vela acesa da menina
da direita queimou as pestanas
e o olho explodiu no desemprego

e hoje ser agricultor estilo portuga
é desfilar de enxada às costas
num supermercado e comprar o agrião
e o nabo embalado
enquanto outros rufam tambores
para preservar o lince e a urtiga
e nenhum barulho para preservar
a ideia de que nada se pode preservar
eternamente



(CONTINUA)


Jorge Aguiar Oliveira