MARGINAIS #2
O post de PM que originou esta minha elucubração foi alterado. Onde se lia: «A grande literatura é sempre intrinsecamente marginal, na sua visão do mundo e uso da linguagem, e isso não depende da biografia dos escritores. Quem liga muito à «marginalidade» em geral liga pouco à «literatura»»; lê-se agora: «A grande literatura é sempre intrinsecamente marginal, na sua visão do mundo e uso da linguagem. E isso não depende das anedotas biográficas.» Que PM tenha alterado a conclusão do raciocínio apenas abona em seu favor. Houve reacções ao post, devotas e laicas, acrescentadas por PM no final do texto. Volto eu agora ao mesmo, motivado por uma reacção de João Camilo ao meu post, devidamente ilustrada por Carlos Sousa de Almeida. Diz João Camilo: «Se a literatura fosse coisa tão marginal, se se pudesse definir a literatura caracterizando-a como "aquilo que por natureza é marginal", não havia a escrever sobre ela nos jornais as pessoas que lá encontramos - pessoas de quem a mentalidade no poder gosta o bastante, pois de outro modo não lhes dava papel para pintar com letras. Nem havia nas livrarias tantos livros em cima das mesas e nas estantes. Sejamos claros: há marginais chatos e marginais interessantes, marginais inteligentes e marginais estúpidos, portanto ser marginal só por si, I'm sorry, não significa nada. O "valor" precisa de razões suplementares. E só há dois tipos de literatura: a boa e a má. Depende da capacidade, da necessidade e dos gostos de cada um.» (o sublinhado é meu) Tudo isto parece-me tão evidente que não merece discussão. Mas estou convencido de que o assunto presta-se a alguns equívocos, o primeiro dos quais surge, paradoxalmente, por defeito de clareza. É impossível discutir este problema sem tornar claro o que cada um entende por literatura. De que falamos quando falamos de literatura? PM torna o assunto ainda mais complexo ao referir-se a uma grande literatura, o que pressupõe, pelo menos, a existência de uma pequena literatura. Como distinguir uma da outra? Não é fácil responder a estas questões, nem creio que esteja ao alcance de alguém poder responder-lhes com um tal grau de objectividade que nos tornasse possível, daí em diante, distinguir a grande literatura da pequena literatura (partindo do princípio que existam tais clivagens, igualmente sugeridas por Camilo quando fala de boa e de má literaturas). Qual a boa, qual a má? Qual a grande, qual a pequena? O que eu afirmo, e disso faço mera questão de fé, é que «tendo a concordar que a literatura seja sempre (intrinsecamente) marginal». Isto não tem nada que ver com o facto de haver nos jornais quem escreva sobre livros, livros esses que, tantas e tantas vezes, não escapam ao destino da maioria dos livros – o esquecimento – ou circulam, a custo e longo prazo, pelas mãos de uma ínfima parte de leitores. Vou mais longe: que a literatura seja intrinsecamente marginal não significa sequer que não venda, que não gere cultos e lucros e etc. Veja-se o caso do marginal Pessoa, entretanto institucionalizado e disseminado por tudo o que possa servir de pretexto para a putativa promoção da leitura. Quando falo de literatura falo de algo mais do que do mercado literário, falo não apenas de livros e livreiros, escritores e leitores, de bancas atafulhadas de títulos supérfluos, jornais, weblogs, revistas, sítios religiosamente dedicados ao negócio da palavra, não falo de prémios literários nem da forma como o negócio da palavra possa servir para alimentar toda uma indústria de papel. Do que falo, então, quando falo de literatura? Falo, de facto, de uma arte intrinsecamente marginal, porque falo de uma arte transgressora e, por isso mesmo, transformadora de um dos bens mais preciosos da humanidade: a linguagem. Quando falo de literatura falo de algo que está ao alcance de muito poucos, ou seja, a capacidade de transformar a linguagem, de acrescentar algo à língua em que se escreve, de romper com as normas, os cânones, as regras que permitem, num determinado tempo histórico, rotular com a maior das facilidades o trabalho deste ou daquele autor. Ser marginal será, quanto a mim, ter a ousadia de afrontar esses rótulos. Nada disto, obviamente, está dependente de aspectos biográficos e opções políticas. Talvez esteja, de uma ou de outra forma, relacionado com a experiência de vida. Mas aí entraríamos num outro domínio. Seja como for, mesmo pensando no mercado do livro, digam-me lá se em Portugal este não é um mercado marginal: a grande maioria dos portugueses nunca leu um livro depois de ter saído da escola, muitos nem sequer pegaram nos livros durante o período escolar obrigatório, dos cerca de 35% de portugueses que afirmam ler livros apenas 4% lêem 2 ou mais livros por mês, sendo que a maioria, cerca de 75%, lê entre 1 a 5 livros por ano. Não vale a pena perdermos tempo com os livros que lêem, mas podemos ter uma ideia olhando, por exemplo, para o top dos livros mais vendidos disponível, neste momento, no sítio da FNAC: O Segredo, de Rhonda Byrne; 1808, de Laurentino Gomes; Os Retornados, de Júlio Magalhães; P.S. – Eu Amo-te, de Cecelia Ahern; O Sétimo Selo, de José Rodrigues dos Santos; Treine o seu Cérebro, de Ryuta Kawashima; A Rapariga que Inventou um Sonho, de Haruki Murakami; Lavagante: Encontro Desabitado, de José Cardoso Pires; O Que os Ricos Sabem e não Contam, de Aitor Zárate e Rio das Flores, de Miguel Sousa Tavares. Quantos destes livros serão literatura, grande ou pequena, boa ou má, não me é possível definir. Não li nenhum deles.
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