MARGINAIS
Hesitei um pouco (perto de cinco segundos de hesitação) entre continuar a trabalhar e escrever este post. Seria redundante dizer qual foi a opção tomada. Este post tem na sua origem um outro post, intitulado Os marginais, assinado por PM no Estado Civil. A comparação estabelecida nesse post de PM, entre Luiz Pacheco e Maria Gabriela Llansol, não é infeliz de todo. Mas há uma deliciosa contradição no final do texto. PM diz o seguinte: «A grande literatura é sempre intrinsecamente marginal, na sua visão do mundo e uso da linguagem, e isso não depende da biografia dos escritores. Quem liga muito à «marginalidade» em geral liga pouco à «literatura»». É óbvio que o remate faz-se defender pelo uso das aspas nos termos marginalidade e literatura, assim como pela utilização dessa vaga expressão em geral. Prefiro a assertividade da primeira premissa: a grande literatura é sempre intrinsecamente marginal. Poderíamos concluir que ligar à marginalidade é ligar à literatura, raciocínio que resultaria confuso pela dúplice utilização do predicado marginal: quando nos referimos aos aspectos biográficos de um autor e quando nos referimos à literatura. De facto, tendo a concordar que a literatura seja sempre (intrinsecamente) marginal. Esta concordância implicaria um esclarecimento do que se entende por literatura. Não há tempo. Mas a importância conferida aos pormenores biográficos de um autor pode ser alvo de uma brevíssima reflexão. Quem me conhece, sabe que gosto de separar as águas. Não leio, e muito menos aprecio um autor pela sua biografia. Grandes artistas terão sido autênticos trastes enquanto seres humanos. No entanto, nestas coisas há sempre um entanto, certos pormenores biográficos são-me deveras atraentes nas pessoas (sejam elas artistas ou não). Dou exemplos: a loucura, o suicídio, comportamentos autodestrutivos, a libertinagem, a obstinação, o isolamento, são características humanas que me fascinam. É natural que, sentindo esse fascínio, sinta também uma certa atracção pelos autores que, de uma forma ou de outra, manifestaram essas características em vida. Quando lhes leio os livros, se forem escritores, não procuro nos livros reflexos desses comportamentos, dessas opções ou dessas contingências, mas parto do princípio que, entre a vida e a obra, se processa uma espécie de suicídio onde a experiência vivida aparece, de algum modo, metamorfoseada na palavra. Não sei se ligar muito à marginalidade pode ser interpretado, em geral, como um mero culto que nos afasta do literário. Prefiro pensar que ligar muito à marginalidade é uma forma de criar pontes com o literário, mesmo supondo que nem todas as marginalidades se reflectem da mesma forma nas obras criadas. Autores há que, simulando vidas completamente integradas e, do meu ponto de vista, banais e desinteressantes, outra coisa não fazem senão manifestar nas suas obras uma marginalidade recalcada na vida quotidiana. E o contrário também pode ser verdadeiro. Ou seja, autores que se fazem promover através de posturas assumidamente controversas, inconformistas e desviantes, mas que, na realidade, não passam de copinhos de leite. O que há de interessante nesta questão é apenas o que se mostra na obra. Penso, por exemplo, na experiência que Dziga Vertov levou a cabo em O Homem da Câmara de Filmar. A base da ideia era uma experiência de cinema puro, ou seja, imagem em movimento, sem argumento, palco, actores, etc.. Mas esse tal cinema puro resulta de uma construção, de uma montagem, de um olhar sobre a realidade. Vertov não nos mostrou a vida em movimento, mostrou-nos o seu olhar movimentando-se na planura do real. Sendo assim, é Vertov que se manifesta no que nos é mostrado. Não é o real, apenas um fragmento do real capturado pelo olhar depredador do homem da câmara de filmar. Na literatura, incluindo a dos escritores ditos marginais, não se processa outra coisa. Daí que, sendo a grande literatura sempre intrinsecamente marginal, também os escritores que produzem grande literatura o serão. Intrinsecamente, claro.
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