6.3.08

Fragmento #60 – Padrões

Apanho o comboio a correr de madrugada, o transporte romântico, UUUuuuUUU, ainda vou meia a dormir, levo no bolso a segurança do bilhete comprado na véspera, quando ainda estava desperta. Entro, sento-me e quase nem olho a janela, fecho os olhos e deixo-me levar no movimento apenas interrompido por estações anunciadas ao longe: Santarém, pouca-terra pouca-terra, Entroncamento, pouca-terra pouca-terra, Caixarias, pouca-terra e ao mudar de posição, abro os olhos e deparo-me com outros a fixarem-me. Está ali um rapaz a observar-me e volto-me para outro lado. Penso: estive tanto tempo adormecida, anos fechada ao exterior, desleixei-me, maltratei-me e agora que me livrei de 45kg, está ali um puto a galar-me. Abro os olhos e lá está ele à distância a ouvir a sua música, não desvia os olhos, não sei se gosto da situação. A quantas estações ele me observa a dormir? Porquê a mim? Podia entrar numa cena narcísica, os especialistas dizem que isso deriva de um forte trauma na fase oral, coisas de desmame. Do pouco que sei, nem a mama tive direito, foi só biberão visto que não houve leite natural para mim. O olhar daquele rapaz está a incomodar-me, ele quer mama. Levanto-me em direcção ao bar, com um café o mundo ficará mais claro. Lembro-me da conversa da minha irmã na véspera, ela vai fazer 40 anos e não quer comemorar. Dizia-me ela que mentalmente não acha que os tem, mas começa a sentir que o corpo não a acompanha, foi operada à vista porque já não conseguia ler os rótulos dos medicamentos na farmácia e mesmo assim ainda vai continuar a usar óculos. Ela tem três filhos, sente dores nas pernas e nas costas ao fim do dia. Sento-me para beber o café e como um quadrado de chocolate. Penso: o que estava a ver aquele rapaz para me fixar com tanta intensidade? Eu vejo-me como uma ferida a sarar, quase uma cicatriz. Como mais um quadradinho e nem acredito, o miúdo também veio para o bar, está ali ao balcão, vem na minha direcção com uma cerveja, senta-se sem pedir licença e em silêncio ao meu lado. Eu olho a garrafa, cerveja logo de manhã, coitado, mais uma vítima de padrões de comportamento. Coitado não, somos todos vítimas de padrões de comportamento. A nós chateiam-nos desde a adolescência para falarmos mais baixo, ouvir com atenção, sentarmo-nos de perna fechada, sermos discretas e gentis senão depois nenhum homem quer casar connosco, temos de ser boas meninas. Eles têm de ser fortes, viris, andar à pancada, passar por rituais onde se torturam animais, beber álcool, engatar gajas, não podem chorar ou ser sensíveis. Eles queixam-se de que nós temos mais atenção e carinho, somos passivas e a afectividade está toda virada para nós, o que é mentira. Nós queixamo-nos de que eles têm mais liberdade e a vida social mais facilitada, o que também é mentira. Ainda bem que certos padrões hoje em dia já estão mais diluídos, mas uma coisa é certa, o sofrimento não desapareceu na espécie humana e deixa mazelas. O rapaz está a mexer no seu leitor de música, reparo que tem umas mãos bonitas, grandes, com os dedos muito compridos. Ele está a desligar aquilo, eu devo ser um vídeo clipe, o melhor é pisgar-me, levanto-me para ir à casa de banho e volto ao meu lugar. Passado um bocado, ele volta, que cerveja rápida, nem deve dar direito a xixi. Desde muito cedo que lhes incutem que as mulheres servem apenas para foder e a nós tentam convencer-nos que existimos apenas para sermos fodidas. Oiço Coimbra, finalmente, retiro a mala e chego ao meu destino. Ao sair penso: és mesmo parva, mulher, vê-se logo que resultas de padrões de comportamento, se fosses gajo não ficavas incomodado, tinhas ali um belo petisco, passarinho frito, dava para chupares a carnoca dos ossinhos das asas.

Maria João

5 Comments:

At 4:23 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Ena ena
Que texto delicioso!!!

 
At 4:24 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Que frase feliz:
'O olhar daquele rapaz está a incomodar-me, ele quer mama.'

 
At 11:07 da manhã, Blogger MJLF said...

Fernando; obrigada, mas não sei se é delicioso.
Maria João

 
At 3:32 da manhã, Blogger Unknown said...

Pode não ser o melhor que fizeste. Mas está bastante bem. Por momentos estive na carruagem, foi uma viagem agradável.

Estou cheio de saudades e já não sei se te vou reconhecer.

Bacci Ragazza

 
At 2:09 da tarde, Blogger MJLF said...

Querido amigo quark, também tenho muitas saudades tuas, já não te vejo à mais de 40kg, mas acho que me vais reconhecer de certeza.
;)
Maria João

 

Enviar um comentário

<< Home